Há mais de 30 anos biólogos estudam e tentam preservar a espécie.
Ações de educação e de conscientização fazem parte do projeto.
Pesquisadores realizam atividades para incentivar a preservação do boto cinza (Foto: Mariane Rossi/G1)
Navegar em um barco e avistar golfinhos em seu entorno é um privilégio
para moradores e turistas que passam pelo Lagamar, um complexo estuarino
em Cananéia, no litoral sul de São Paulo. Há mais de 30 anos, um grupo
de pesquisadores luta para preservar o bem estar da espécie e do
ecosistema, para garantir que essa cena não se torne uma mera lembrança
do passado.Já em 1997, foi fundado o Instituto de Pesquisas de Cananéia (Ipec), uma organização não governamental (ONG) sem fins lucrativos que desenvolve projetos de pesquisa científica em prol da conservação do meio ambiente. Dois anos depois o Projeto Boto Cinza foi registrado, como sendo o primeiro projeto, dentre os seis que são coordenados pelo Instituto atualmente. Com o passar dos anos, foi criado um grupo de pesquisadores voltados para o estudo do boto cinza. Eles criaram cursos para levar mais conhecimento aos moradores da região e os estudantes da área de biologia marinha, além de ser uma forma da ONG se auto-sustentar.
Esqueleto de boto cinza exposto em Cananéia, SP
(Foto: Mariane Rossi/G1)
Em 2001, a 1ª base de apoio do IpeC foi inaugurada com o nome ‘Casa
Rosada’, por conta da cor do imóvel. Dois anos depois, eles mudaram de
sede. No ano passado veio a grande conquista do IpeC. O Projeto Boto
Cinza foi selecionado como 1º do Estado de São Paulo e recebeu o
patrocínio da Petrobras.(Foto: Mariane Rossi/G1)
Com mais investimento foi possível ampliar todos os projetos. Atualmente, eles contam com o Projeto Tartarugas, que analisa as espécies na região, Projeto Aves, que estuda os pássaros como fragatas e guarás, Projeto Resgate, que ajuda os animais encontrados encalhados nas praias, o Projeto Carnívoros, que trabalha com animais selvagens, e o Ponto de Cultura ‘Caiçaras’, que valoriza a cultura da região.
Boto-Cinza
De acordo com a coordenadora científica do projeto, Letícia Quito, o boto cinza também pode ser chamado de golfinho. A nomenclatura usada depende da região do país. "Ele é um mamífero aquático, ou seja, ele é dependente do mar e pode ser encontrado somente no Oceano Atlântico, de Santa Catarina até Honduras. Em geral, o pessoal associa o boto aos animais de rio, porque a gente está acostumada a ouvir falar do boto vermelho e o boto cor de rosa, que vive na Amazônia. Então todo mundo associa que o boto é de rio e o golfinho é de mar. Na verdade, é só uma diferença na nomenclatura”, explica ela.
O Projeto Boto Cinza trabalha com a conservação da espécie sotalia guianensis e dos ecossistemas e recursos naturais de seu habitat, no caso, na área do Complexo Estuarino Lagunar, mais conhecido como Lagamar. Essa região está no maior remanescente contínuo de Mata Atlântica brasileiro e abrange o Complexo Estuarino de Iguape e Cananéia, no Estado de São Paulo, e o Complexo Estuarino de Paranaguá, no estado do Paraná. No Lagamar há cerca de 72 quilômetros quadrados de manguezal, composto por árvores com raízes expostas que ficam em um solo repleto de lama e alagadiço. Mesmo com esse aspecto estranho, é um dos ecossistemas mais produtivos do país, rico na flora e fauna, com a presença de crustáceos, peixes, anfíbios, répteis, aves e pequenos mamíferos. No estuário há o encontro de um ou mais rios com o mar. As variações constantes nesse ambiente fazem com que poucas espécies permaneçam a vida toda no estuário, como é o caso dos botos.
Modelos de botos cinzas utilizados em atividades
do projeto em Cananéia (Foto: Mariane Rossi/G1)
Em Cananéia, eles nadam nos estuários que banham os manguezais e tem
importante função nesse sistema, por serem considerados um dos
predadores dessa cadeia alimentar. “Se você conservar o boto cinza, você
acaba mantendo o equilíbrio de todo o resto do que está abaixo dele na
cadeia e de todo o entorno. A nossa preocupação não é só com ele. Essa é
uma das regiões mais preservadas do Brasil. O boto é uma ferramenta
para atingir uma área bem maior”, explica a bióloga Letícia. Para os
botos, o ambiente é propício ao desenvolvimento. O ambiente costeiro e
estuarino lhes proporciona proteção contra predadores, abundância de
alimento, já que comem peixes, lulas e camarões, e condições favoráveis
para a criação de seus filhotes, fatores ideais para a qualidade de vida
da espécie.do projeto em Cananéia (Foto: Mariane Rossi/G1)
Segundo Letícia, esses animais têm características determinantes para a identificação. O boto cinza apresenta uma coloração acinzentada em seu dorso, uma mancha cinza na lateral e o ventre mais claro. Conforme o animal vai se tornando adulto, há uma mudança em sua coloração. “Quando eles são recém nascidos, eles têm o ventre mais rosado e a nadadeira dorsal mais clara. Conforme eles vão ficando adultos, eles vão ficando mais cinzas e a parte que era mais rosada do ventre se torna branca”, explica. Por isso, é fácil distinguir os adultos, que podem chegar a medir 2,10 metros, dos filhotes, que geralmente nascem com cerca de 1 metro. Os botos, tanto machos quanto fêmeas, podem viver até 30 anos.
Ainda segundo a bióloga, o boto cinza passa praticamente 90% do seu tempo se alimentando e buscando comida. Outro fato curioso é que os botos não dormem. “Eles vão para a superfície, ficam mais lentos, já que abaixa o metabolismo. Eles ficam na superfície por no máximo 10 segundos e, depois disso, voltam para a vida normal”, explica Letícia.
Pesquisadores realizam monitoramento dos botos
cinzas em Cananéia, SP (Foto: Mariane Rossi/G1)
Para saber quantos e quais indivíduos existem na população de boto
cinza no Lagamar, quais são as áreas do estuário mais utilizadas por
eles e porque escolhem esses locais, há estudos por meio de observações
em barcos e praias, além da captação de materiais na região onde eles
vivem. Há 14 linhas de pesquisas em três grupos, que falam a respeito de
diversos comportamentos do animal. Há o monitoramento de encalhes,
estudos sobre a estimativa da idade de cada indivíduo, sobre o conteúdo
estomacal, pesquisas ligadas a relação do boto cinza com o homem e com o
turismo regional e avaliação de produtos contaminantes e de fatores que
levam a morte da espécie.cinzas em Cananéia, SP (Foto: Mariane Rossi/G1)
Pelos primeiros estudos, os pesquisadores afirmam que há cerca de 200 indivíduos na região do Lagamar, e que esse número não variou muito desde 2001. A estimativa da densidade populacional é feita por meio de fotografias da nadadeira dorsal do boto, utilizando marcas naturais. “Em todos os nossos trabalhos temos a preocupação de ser o menos invasivos possível. Tentamos mexer e interferir o menos possível no comportamento do bicho", explica Letícia. Também foi observado que os botos usam os cercos fixos, armações artesanais utilizadas pelos pescadores locais para caçar os peixes, para encurralar os cardumes e obter alimento. Por isso, os pescadores se tornam grandes aliados dos botos, já que o animal influencia na quantidade de peixes capturados pela armadilha.
Observação do Boto Cinza impulsiona a economia
Cananéia vive da pesca e do turismo náutico, que ficou mais atrativo nos últimos dez anos com a observação dos botos-cinza em pontos estratégicos da região. Apesar de movimentar a economia de Cananéia, a preservação da espécie precisa ser levada em conta pelos responsáveis pela atividade turística na região.
O whalewatching, ou seja, a oportunidade de observar uma baleia ou golfinho em ambiente natural, faz com que muitos pescadores passem a trabalhar com o turismo principalmente nos meses da temporada de verão. O tipo de embarcação destinada a esse fim tem aumentado em Cananéia, assim como a rede hoteleira da cidade, que hoje tem a capacidade de atender 5 mil turistas. Os pescadores que passaram a oferecer o turismo náutico dizem que cerca de 50% a 60% do lucro vem de levar turistas para avistar os botos. A bióloga Letícia Quito explica que os botos cinzas da espécie sotalia guianensis, encontrados em Cananéia, são mais tímidos. “Infelizmente não da pra ver nenhum boto cinza rodopiando, como os golfinhos conhecidos como rotadores, que saltam muito. O boto-cinza é considerado mais estuarino e o rotador é mais oceânico”, esclarece.
Pessoas observam nado de botos cinzas em
Cananéia, SP (Foto: Mariane Rossi/G1)
Um dos desafios dos pesquisadores do Projeto Boto Cinza é fazer com que
os turistas, os órgãos gestores e a população local tenham consciência
de que é preciso preservar a espécie para que ela continue sendo um
atrativo turístico para a região. “É uma forma de trazer renda para a
população. É uma atividade importante para a região de Cananéia e ela
precisa ser bem ordenada para garantir que todo mundo ganhe. Que o boto
continue na área e que o pessoal que opera com turismo possa continuar
tendo renda a partir dessa atividade desde que ela seja feita de maneira
responsável”, explica a bióloga Maura Cristófani Martins, que atua na
linha de pesquisa sobre interação entre embarcações e o boto-cinza. Uma
pesquisa feita por Gislaine Filla, uma das coordenadoras e biólogas do
Projeto, mostrou que a valorização da atividade de observação do
boto-cinza gerou para a cidade de Cananéia mais de R$ 1 milhão entre os
anos de 2006 e 2007.Cananéia, SP (Foto: Mariane Rossi/G1)
Ao longo dos anos, os pesquisadores notaram que há relação entre a morte dos botos cinza e a interação do homem com a vida marinha. O boto é ameaçado por conta da degradação, perda ou poluição de seu habitat, poluição sonora, colisões com embarcações ou capturas acidentais em redes de pesca.
Para tentar diminuir o número de animais mortos, vítimas da interação entre o homem e o mar, os pesquisadores desenvolvem políticas públicas a favor da preservação da espécie. Eles realizam reuniões com donos de embarcações e com a população local para explicar a lei municipal 2129/2011, que mostra as normas técnicas de conduta que devem ser seguidas na presença do boto cinza em atividades com fins comerciais como turismo, lazer e esporte náutico. Nas áreas de maior ocorrência dos animais, como na Ponta da Trincheira, em Ilha Comprida, na Praia da Itacuruça, na Ilha do Cardoso e na Baia de Trapandé, é proibida a prática de esportes náuticos, como jet sky.
Embarcação utilizada pelos pesquisadores do
projeto (Foto: Mariane Rossi/G1)
Também há cursos para os donos das embarcações conhecerem melhor as
regras para a conservação do boto cinza. Quando o barco está há 500
metros do animal, a recomendação é que diminua a velocidade, há 300
metros deve-se diminuir o ruído da embarcação e há 50 metros do boto é
preciso deixar o motor em ponto morto. Segundo Maura, há entre 50 e 60
embarcações na cidade que são registradas na Prefeitura de Cananéia, sem
contar as particulares como lanchas e jet skis. Aqueles que
participarem das aulas práticas e teóricas ganham o selo do Amigo do
Boto Cinza. “Todos os donos de embarcações recebem como um incentivo. O
turista que vem aqui vai saber que aquela embarcação é responsável, que
conhece e está seguindo as normas de conduta. Essa embarcação passa a
ser mais valorizada pelo turista que busca um serviço mais responsável”,
explica a bióloga Letícia Quito.projeto (Foto: Mariane Rossi/G1)
Também há a divulgação, por meio de estandes, de como proceder diante do encalhe de animais nas praias. “A melhor forma de ajudar é não tocar, não tirar ele da praia. Na vontade de ajudar às vezes você machuca mais o bicho. É importante que a população chame pessoas capacitadas para dar um atendimento básico, para fazer o mínimo para aliviar o sofrimento do bicho. A grande maioria morre”, afirma Letícia
Educação Ambiental
Para levar o conhecimento para as futuras gerações, o Instituto de Pesquisas de Cananéia tem um núcleo de educação ambiental. A informação sobre os botos-cinza e a preservação da espécie passa por escolas, locais públicos e também forma novos pesquisadores.
O personagem Zinho, um botinho cinza, é o centro das atenções das crianças que observam as aulas do projeto nas escolas municipais de Cananéia. O Guia de Educação Ambiental “Turma do Zinho” conta com paisagens e outros personagens que representam animais da região. Assim, os alunos podem aprender mais sobre indivíduos e os ecossistemas que estão bem perto de suas casas. Em 2011, cerca de 500 alunos receberam o projeto Boto Cinza nas escolas.
Pesquisadores também realizam ações de
educação ambiental (Foto: Mariane Rossi/G1)
Nas datas comemorativas, como a Semana do Meio Ambiente, Semana de
Conservação do Manguezal e Dia Mundial de Limpeza de Rios e Praias,
ocorreram atividades e mutirões de limpeza. Nos eventos da cidade e na
Festa do Mar, por exemplo, o IpeC arma estandes e oferece palestras com
orientações. Durante a temporada de verão, o projeto abre inscrições
para programas de voluntariado.educação ambiental (Foto: Mariane Rossi/G1)
Para as comunidades que ficam localizadas em áreas mais distantes do centro de Cananéia, é realizado o Cruzeiro Educart. Os pesquisadores passam o dia todo com as famílias realizando atividades para as crianças e adultos, como quebra-cabeças, jogos de memória, pintura, confecção de carangueijos com caixas de ovos, entre outras. Eles também fazem um teatro de sombras e apresentam vídeos sobre a preservação do Lagamar. Segundo a coordenadora de Educação Ambiental, Daiana Proença Bezerra, quatro comunidades já foram beneficiadas com a ação. “Essas crianças conhecem os animais que às vezes eles vêem no quintal de casa”, diz ela. Durante as ações, os biólogos também levam réplicas de acrílico de uma família de boto-cinza, ossos de baleia, de golfinhos e até dentes de animais para que as aulas possam ser mais dinâmicas, principalmente com as crianças.
A importância de criar novos pesquisadores para estudo e disseminação da preservação do Lagamar também é uma preocupação dos biólogos. Por isso foi criado, em 2011, o programa Jovem Pesquisador.
Alunos das escolas de Cananéia foram selecionados para participar e acompanhar todas as atividades realizadas pelo projeto. A bióloga Letícia Quito explica que os jovens são bolsistas e acompanham todas as atividades que o projeto desenvolve. Eles aprendem a coletar os dados no campo e todas as linhas de pesquisa são acompanhadas. Na maioria das vezes, são jovens de 14 a 17 anos e todos tem que estar em dia com as obrigações escolares. “Cada um deles, ao participar das atividades, influenciam um grande número de jovens nas escolas. Eles passam a ser o exemplo. Trabalhando bem com esses alunos a gente consegue atingir um número grande de pessoas nas escolas. Eles passam a ser multiplicadores das informações”, diz a pesquisadora Lisa Oliveira.
Projeto também forma jovens pesquisadores
(Foto: Mariane Rossi/G1)
Talita Emanoelle Oliveira de Quadros, de 16 anos, fez parte da 1ª
turma. Hoje, ela ensina o que aprendeu aos novos Jovens Pesquisadores.
“Eles foram até a escola e a escola indicou os melhores alunos para
participar do projeto. Eu fiquei muito feliz. Eu não conhecia muito bem o
IpeC e eu achei super gratificante. É um reconhecimento por você ser
bom na escola e ser escolhido por esse motivo foi muito bom”, diz ela,
que estuda na Escola Estadual Professora Iolanda Araújo Silva Paiva.(Foto: Mariane Rossi/G1)
Talita conta que durante o ano de 2011 acompanhou os pesquisadores nas escolas com educação ambiental e, pouco tempo depois, passou a dar palestras para as crianças, começou a confeccionar apostilas com pesquisas e também ajudava os pesquisadores a coletar dados, a analisar materiais e guardar os equipamentos. “A timidez diminuiu bastante”, conta ela sobre seu desenvolvimento pessoal. Mesmo querendo ser médica ou engenheira, ela quer continuar ajudando na preservação do boto cinza de alguma forma. “Pretendo não me desligar totalmente do projeto”, diz.
Entre os jovens pesquisadores deste ano está Robson Leonardo de Paula Santos, de 17 anos, amigo de Talita. “Eu participei do programa que teve no verão. Era um trabalho voluntário e eu acabei gostando. O projeto é bom. Melhoramos também no nosso convívio com a sociedade, divulgando mais coisas para as pessoas”, diz. Ele conta que a parte mais gostosa é participar das ações de educação ambiental e divulgação do projeto. Robson, que está no 3º ano do Ensino Médio, já pensa em seguir a carreira de comunicação no futuro. “Eu gosto de jornalismo. Posso entrar na área de ecologia também, divulgando o projeto”, planeja.
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