Artigo do jornalista Alberto Gonçalves, publicado no Observador, faz dura crítica à mentalidade e aos governantes portugueses diante do incêndio d Pedrógão Grande:
Anteontem,
o “Jornal de Notícias” recordava o “‘inferno’ idêntico ao de Pedrógão”,
que “reduziu a cinzas cidade no Canadá”. Aconteceu em 2016, queimou 590
mil hectares e obrigou a evacuar Fort McMurray, uma cidade de 80 mil
habitantes. O “JN” diz, provavelmente com razão, que “ninguém poderia
prever” aquilo. O que o “JN” não diz é o número total de mortos. Digo
eu: zero.
Ao invés
dos abundantes especialistas em floresta que despontam por cá a cada
Verão (ainda assim insuficientes para impedir a floresta de arder com
empenho), acredito existirem fogos impossíveis de prever e quase
impossíveis de controlar. Fortuita ou provocada, por árvore delinquente
ou pirómano de aldeia, a destruição leva sempre vantagem. Embora
Portugal queime de forma rara em regularidade e dimensão, às vezes há
catástrofes devastadoras até em paragens desenvolvidas e organizadas e
demograficamente equilibradas. Às vezes, a resignação é o único remédio.
Pedrógão
Grande, porém, é um caso diferente. Aquele não foi um simples incêndio.
Foi, desde que há registos fiáveis, um dos incêndios florestais mais
mortíferos da História, portuguesa, europeia ou mundial. Na Califórnia,
onde as chamas costumam arrasar territórios imensos e lugarejos
inteiros, o recorde de fatalidades são 29, em 1933, e a regra duas ou
três. Sessenta e quatro vidas, contas provisórias e para cúmulo numa
área pouquíssimo povoada, não é um dado comum. É um massacre evitável. E
é um crime fingir que não.
Na
quarta-feira, o exacto dia em que a nomenclatura do regime compareceu
pesarosa ao funeral de um bombeiro, o Presidente da República declarou
que a “unidade nacional” perante a tragédia “mostra bem como somos uma
nação antiga e uma nação muito forte”. À superfície, tais palavras são
apenas um deprimente vazio. Sucede tratar-se do exacto PR que, entre
abraços sortidos, ocupou os minutos iniciais que os noticiários
dedicaram ao incêndio para garantir que fora feito tudo o que se podia
fazer. Pelo meio, o país tomou conhecimento de dezenas de mortos e da
radical desorientação ou impotência das autoridades. E o país viu-se
atacado por uma operação, talvez inédita, de manipulação informativa
liderada pelo governo e patrocinada por boa parte dos “media”. O país
que quis perceber percebeu que a “nação muito forte” é uma coisinha
débil, e que a “unidade nacional” é uma estratégia repugnante para, em
nome das vítimas, socorrer os suspeitos. Note-se que não acuso ninguém.
Não é preciso: os esforços para suprimir culpas são a sua maior
admissão.
A
“incompetência do Governo não pode encontrar justificação na
meteorologia”, berrava o BE em 2015, face a 28 mil hectares queimados e,
suponho, morto nenhum. Agora, a actriz Catarina Martins implora no
Twitter: “Que venha a chuva. Bom dia”. A brandura é partilhada pelo PCP,
o qual, salvo por um patético “pedido de esclarecimento”, refugiou-se
no luto. “Luto”, aqui, é código para “ganhar tempo”. Não surpreende a
cumplicidade dos partidos comunistas no arranjo. Não surpreendem os
esforços do PS na elaboração do arranjo. Não surpreende o aval do PR ao
arranjo, visto que já só os ceguinhos não vêem a verdadeira função do
prof. Marcelo. E não surpreende a ajuda das televisões e dos jornais à
eficácia do arranjo.
Numa
proeza sem grandes precedentes na cronologia do servilismo ocidental, um
diário de rever…, perdão, referência, mobilizou todo o corpo de
colunistas para atribuir Pedrógão Grande à desdita, à conspiração dos
elementos e – segurem-se – ao “fogo que voa”. É um mero, mesmo que
particularmente asqueroso, exemplo. Descontadas as excepções, o tom das
“notícias” não tem fugido à produção de prosa “poética” e sentimento. Em
contrapartida, foge a oito pés na hora de escrutinar o poder.
Editoriais espanhóis decretam o fim da carreira do primeiro-ministro,
mas ignoram que o repórter português médio permite que o excelentíssimo
espécime coloque as perguntas que quer em lugar de responder às que não
quer. Mal habituados, jornalistas a sério não concebem que o jornalismo a
brincar colabore com estadistas de trazer por casa em sinistras
encenações de compaixão. Aliás, o jornalismo a brincar também não
concebe o seu oposto: um colunista do “El Mundo”, crítico das nossas
desgraças, anda a ser investigado pelos colegas de cá, abismados com o
desplante.
Em
nações menos exóticas, haveria quem expusesse o talento do dr. Costa, de
certos amigos do dr. Costa e de outras personalidades admiráveis no
“investimento” de milhões em comunicações que não comunicam e em
helicópteros que não descolam. E quem fosse directa ou indirectamente
responsabilizado pelas famílias encurraladas e carbonizadas em plena
estrada, que se apelida “da morte” para efeito “dramático”. E quem
denunciasse as mentiras cometidas por figuras ditas de relevo a partir
do ponto em que a quantidade de cadáveres era demasiada para continuar a
adiar a divulgação. E quem, acima dos estropícios que entopem a
Administração Interna, explicasse em língua de gente a recusa dos
bombeiros galegos. E quem lembrasse que é tão fácil quanto inútil ganhar
campeonatos de futebol, festivais de cantigas e incumbências na ONU:
difícil é ganhar vergonha na cara.
Nações
menos infantis não descansariam até varrer os demagogos que celebram
glórias imaginárias e fintam as desgraças autênticas. Portugal, não.
Portugal respeita os mortos, leia-se espera que os vivos não perturbem a
“estabilidade”. Portugal observa prioridades, leia-se deixa arrefecer o
assunto. Portugal não cede à baixa política, leia-se permite a
impunidade geral. Portugal está unido, leia-se criou-se um ambiente
hostil a questões desagradáveis. Portugal, repete-se, é uma nação muito
forte, leia-se um recreio de oportunistas, desnorteados ao primeiro
assomo da realidade.
Sobra
uma lição, que a “nação muito antiga” teima em não aprender. Em Pedrógão
Grande, o Estado falhou no solitário papel que lhe devia caber:
proteger fisicamente os cidadãos. Logo o Estado, de que os portugueses
esperam tudo e, no momento que importa, obtêm nada. Não é coincidência.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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