Artigo de Vilma Gryzinski, publicado em Veja.com, vai ao ponto: "oposição
ao presidente norte-americano não justifica a falcatrua intelectual de
colocá-lo no mesmo nível de sandice da ratazana que ruge na Coreia do
Norte":
Nossa, esses dois malucos vão acabar levando o mundo à Terceira Guerra Mundial!
Dos mais ingênuos aos mais sofisticados, esta é uma reação frequente ao nível cada vez mais inflamado das ameaças da Coreia do Norte aos Estados Unidos e das respostas brutas de Donald Trump a elas.
A rejeição a Trump
explica os ingênuos. Já os sofisticados, na maioria pagos para analisar
fatos e seu contexto, não têm desculpa.
O ódio ao presidente
os perturba a tal ponto que não conseguem tirar o pé do atoleiro lógico
em que se meteram. A exacerbação emocional se transforma rapidamente em
má fé intelectual.
Fazer comédia com os
dois portadores de mau gosto capilar, como fazem todos os comediantes
americanos, é uma coisa. Outra é abusar da falácia da falsa analogia.
“Dois pirralhos
gorduchos com mísseis enormes e pavios curtos. O inverno nuclear está
chegando?”, escreveu Maureen Dowd. Por gracinhas mais inspiradas,
cabeças rolariam em Game of Thrones, a comparação banal da geralmente
criativa colunista do New York Times.
Como toda uma imensa
maioria de colegas da imprensa americana, ela se embebedou com as
comparações. Atingiu o auge quando citou Michael D’Antonio, autor de uma
biografia escorchante do presidente: “Kim entende Trump melhor do que
Trump entende a si mesmo”.
Sem se dar conta,
como D’Antonio, ou muito conscientes do que fazem, legiões de detratores
de Trump chegam a exaltar ou até a torcer abertamente por Kim Jong-Un, um ditadorzinho hereditário que mandou matar o irmão e o tio, só para ficar nas barbaridades em família.
ILHA DOS LADRÕES
Faz parte desse destempero exaltar a capacidade militar da Coreia do Norte como contendora à altura dos Estados Unidos.
Só para lembrar, como fez a Economist, os americanos gastam por ano com animais de estimação o dobro do PIB norte-coreano.
Só para lembrar, quem
se jogou na pista dupla da corrida nuclear acelerada e das ameaças
malucas foi o regime norte-coreano, uma mistura de comunismo ao estilo
maoísta radical com culto à dinastia Kim – avó, filho e neto – como
personagens semidivinos.
Só para lembrar, quem
deu até as coordenadas de um próximo ataque com mísseis (convencionais,
por favor, não confundam) quase dentro das águas territoriais de Guam
foi a Coreia do Norte.
E Guam é território
americano no Pacífico, existindo basicamente em função das bases aéreas e
navais. Foi descoberta para o mundo ocidental pelo mais extraordinário
dos extraordinários navegadores portugueses, Fernão de Magalhães. E
chamada de Ilha dos Ladrões depois que moradores locais, chegando em
canoas, “entraram nos barcos e roubaram tudo aquilo em que conseguiram
deitar as mãos”.
SÓ NO GOGÓ?
Existem, evidentemente, dúvidas e críticas sérias sobre o modo como Trump está conduzindo, de público, esta crise.
A mais fundamental
delas: Donald Trump está fazendo uma jogada bem planejada, em tom nu e
cru, ou apenas vai improvisando, no gogó, conforme aumenta o ritmo das
ameaças do inimigo desabusado?
Outra: ao dizer, por
exemplo, que as forças americanas estão com as armas “travadas e
carregadas”(expressão usada por John Wayne num filme da II Guerra
Mundial, sobre um tipo de fuzil), Trump está fechando as portas para uma
saída negociada, única opção à alternativa bélica?
Mais uma: a política
dele seria realmente uma boa variante da “teoria do já que”? Ou seja, já
que todas as outras alternativas fracassaram, inclusive anos de
negociação em que a ratazana norte-coreana rugiu até conseguiu discutir
com potências como Estados Unidos, China, Rússia, Japão e Coreia do Sul,
ameaçar Kim e companhia de forma concreta e dramática talvez funcione.
A alternativa
diplomática foi séria a ponto de Bill Clinton ter prometido dois
reatores nucleares para fins pacíficos se a Coreia do Norte renunciasse
ao programa para fazer a bomba. Enquanto fingia negociar, o regime
coreano instalava uma rede subterrânea de refinamento de urânio
radiativo, com tecnologia fornecida pelo sinistro Dr. A. Q. Khan, o
gênio do programa nuclear paquistanês.
Acordos feitos com
George Bush em 2007 e com Barack Obama em 2012, todos envolvendo
dinheiro para adoçar a boca do clã Kim, terminaram em nada.
De modo geral, os
Estados Unidos preferiram ao longo dos anos deixar que o problema
norte-coreano se resolvesse sozinho, com um regime fadado ao esgotamento
natural que implodiu o comunismo, como na União Soviética, ou o
transmutou em sistemas de capitalismo de estado com partido único, como
na China ou no Vietnã.
CORINGA ASIÁTICO
A Guerra da Coreia
foi uma experiência ruim – e satirizada numa antiga série de televisão,
MASH, como um sacrifício excessivo para a de base, tropa conduzida por
comandantes militares loucos por vitórias, depois do sucesso final
retumbante na II Guerra Mundial.
A impressão de
inutilidade persistiu porque a guerra, iniciada pelos norte-coreanos com
apoio soviético e chinês terminou numa espécie de empate, o armistício
de 1953, que selou a divisão da península coreana.
Os Estados Unidos
sofreram quase 170 mil baixas, das quais 33 mil mortos. A avaliação
corrente é que a Coreia do Norte perdeu 20% de sua população: 600 mil
civis e 400 mil soldados.
Se ninguém imaginaria
repetir isso, por que Kim júnior se transformou numa versão oriental do
Coringa de Batman, dando gargalhadas obsessivas a cada novo teste com
mísseis de longo alcance, tão maniacamente feliz que até posou com um
general andando de cavalinho nele? Isso num regime delirante em que a
coreografia oficial dos aplausos muitas vezes tem que ser acompanhada de
lágrimas de emoção diante da visão do líder supremo?
Perguntar os motivos
de Kim continua a ser importante, mas deixou de ser vital diante dos
fatos: a Coreia do Norte tem mísseis de alcance cada vez maior e, agora,
ogivas nucleares suficientemente compactadas para ser instaladas neles.
Com razão, o governo
Trump decidiu que a era da “paciência estratégica” havia terminado. Por
causa do ódio a Trump, as atitudes de John Kennedy durante a Crise dos
Mísseis de Cuba têm sido mencionadas como padrão de comportamento de
estadista que salvou o mundo de uma guerra nuclear.
Na verdade, Kennedy
forçou a União Soviética a recuar e tirar os mísseis instalados
secretamente em Cuba com base em ameaças e ultimatos brutais (mais
tarde, foi Nikita Krushchev quem explicou o recuo a Fidel Castro, que
queria partir para a incineração nuclear).
Kennedy já tinha na
sua conta o fracasso da invasão da Baía dos Porcos, quando abandonou os
cubanos anti-castristas à própria sorte. Sem contar as várias tentativas
goradas de assassinar Fidel.
ROLETA RUSSA
Nada disso indica
exatamente um modelo de estadista, mas sim um líder político agindo no
mundo real, com as condições que tem à mão, entre erros e acertos.
Destes, o maior foi ganhar a mais perigosa roleta russa da história da
humanidade durante a Crise dos Mísseis (temperada por negociações
secretas e concessões em relação aos mísseis americanos instalados na
Turquia).
Por causa da
quarentena decretada por Kennedy, que impunha inspeção obrigatória a
todos os navios a caminho de Cuba, a Marinha americana disparava cargas
explosivas em torno de submarinos soviéticos.
O comandante de um
deles suspendeu no último minuto a colocação em posição de disparo de um
torpedo nuclear. A força explosiva de cada torpedo era de 15 quilotons,
mais o menos a da bomba de Hiroshima.
Foi provavelmente o
mais perigoso dos 13 dias de outubro de 1963, quando o mundo esteve tão
próximo da destruição nuclear que Robert McNamara, secretário da Defesa
de Kennedy, perguntou-se ao fim da primeira semana de tensão máxima se
viveria “para ver outro sábado”.
Detalhe: todas as declarações soviéticas na época eram de que os mísseis em Cuba tinham objetivo puramente defensivo.
Imaginem como Kennedy
reagiria se Nikita Krushchev saísse declarando que ia mandar
“presentes”, “incinerar” ou reduzir a “cinzas” os Estados Unidos?
Kim não pode fazer
nada disso, mas também não pode dizer que pretende. Quem coloca no mesmo
nível as bravatas perigosas, mesmo que irrealizáveis, do ditador
hereditário e as ameaças perfeitamente factíveis, embora altamente
indesejáveis se houver outra alternativa, de Trump está, no fundo,
escolhendo um vitorioso para a roleta coreana. E não é Trump.
O que Maureen Dowd e a
infinidade de outros da mesma escola de antitrumpismo acharia de um
mundo em que Kim Jong-Un obriga os Estados Unidos a falar fino?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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