MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Torcendo pelo inimigo: comparar Kim e Trump é prova de má-fé.


Artigo de Vilma Gryzinski, publicado em Veja.com, vai ao ponto: "oposição ao presidente norte-americano não justifica a falcatrua intelectual de colocá-lo no mesmo nível de sandice da ratazana que ruge na Coreia do Norte":


Nossa, esses dois malucos vão acabar levando o mundo à Terceira Guerra Mundial!

Dos mais ingênuos aos mais sofisticados, esta é uma reação frequente ao nível cada vez mais inflamado das ameaças da Coreia do Norte aos Estados Unidos e das respostas brutas de Donald Trump a elas.

A rejeição a Trump explica os ingênuos. Já os sofisticados, na maioria pagos para analisar fatos e seu contexto, não têm desculpa.

O ódio ao presidente os perturba a tal ponto que não conseguem tirar o pé do atoleiro lógico em que se meteram. A exacerbação emocional se transforma rapidamente em má fé intelectual.

Fazer comédia com os dois portadores de mau gosto capilar, como fazem todos os comediantes americanos, é uma coisa. Outra é abusar da falácia da falsa analogia.

“Dois pirralhos gorduchos com mísseis enormes e pavios curtos. O inverno nuclear está chegando?”, escreveu Maureen Dowd. Por gracinhas mais inspiradas, cabeças rolariam em Game of Thrones, a comparação banal da geralmente criativa colunista do New York Times.

Como toda uma imensa maioria de colegas da imprensa americana, ela se embebedou com as comparações. Atingiu o auge quando citou Michael D’Antonio, autor de uma biografia escorchante do presidente: “Kim entende Trump melhor do que Trump entende a si mesmo”.

Sem se dar conta, como D’Antonio, ou muito conscientes do que fazem, legiões de detratores de Trump chegam a exaltar ou até a torcer abertamente por Kim Jong-Un, um ditadorzinho hereditário que mandou matar o irmão e o tio, só para ficar nas barbaridades em família.

ILHA DOS LADRÕES

Faz parte desse destempero exaltar a capacidade militar da Coreia do Norte como contendora à altura dos Estados Unidos.

Só para lembrar, como fez a Economist, os americanos gastam por ano com animais de estimação o dobro do PIB norte-coreano.

Só para lembrar, quem se jogou na pista dupla da corrida nuclear acelerada e das ameaças malucas foi o regime norte-coreano, uma mistura de comunismo ao estilo maoísta radical com culto à dinastia Kim – avó, filho e neto – como personagens semidivinos.

Só para lembrar, quem deu até as coordenadas de um próximo ataque com mísseis (convencionais, por favor, não confundam) quase dentro das águas territoriais de Guam foi a Coreia do Norte.

E Guam é território americano no Pacífico, existindo basicamente em função das bases aéreas e navais. Foi descoberta para o mundo ocidental pelo mais extraordinário dos extraordinários navegadores portugueses, Fernão de Magalhães. E chamada de Ilha dos Ladrões depois que moradores locais, chegando em canoas, “entraram nos barcos e roubaram tudo aquilo em que conseguiram deitar as mãos”.

SÓ NO GOGÓ?

Existem, evidentemente, dúvidas e críticas sérias sobre o modo como Trump está conduzindo, de público, esta crise.

A mais fundamental delas: Donald Trump está fazendo uma jogada bem planejada, em tom nu e cru, ou apenas vai improvisando, no gogó, conforme aumenta o ritmo das ameaças do inimigo desabusado?

Outra: ao dizer, por exemplo, que as forças americanas estão com as armas “travadas e carregadas”(expressão usada por John Wayne num filme da II Guerra Mundial, sobre um tipo de fuzil), Trump está fechando as portas para uma saída negociada, única opção à alternativa bélica?

Mais uma: a política dele seria realmente uma boa variante da “teoria do já que”? Ou seja, já que todas as outras alternativas fracassaram, inclusive anos de negociação em que a ratazana norte-coreana rugiu até conseguiu discutir com potências como Estados Unidos, China, Rússia, Japão e Coreia do Sul, ameaçar Kim e companhia de forma concreta e dramática talvez funcione.

A alternativa diplomática foi séria a ponto de Bill Clinton ter prometido dois reatores nucleares para fins pacíficos se a Coreia do Norte renunciasse ao programa para fazer a bomba. Enquanto fingia negociar, o regime coreano instalava uma rede subterrânea de refinamento de urânio radiativo, com tecnologia fornecida pelo sinistro Dr. A. Q. Khan, o gênio do programa nuclear paquistanês.

Acordos feitos com George Bush em 2007 e com Barack Obama em 2012, todos envolvendo dinheiro para adoçar a boca do clã Kim, terminaram em nada.

De modo geral, os Estados Unidos preferiram ao longo dos anos deixar que o problema norte-coreano se resolvesse sozinho, com um regime fadado ao esgotamento natural que implodiu o comunismo, como na União Soviética, ou o transmutou em sistemas de capitalismo de estado com partido único, como na China ou no Vietnã.

CORINGA ASIÁTICO

A Guerra da Coreia foi uma experiência ruim – e satirizada numa antiga série de televisão, MASH, como um sacrifício excessivo para a de base, tropa conduzida por comandantes militares loucos por vitórias, depois do sucesso final retumbante na II Guerra Mundial.

A impressão de inutilidade persistiu porque a guerra, iniciada pelos norte-coreanos com apoio soviético e chinês terminou numa espécie de empate, o armistício de 1953, que selou a divisão da península coreana.

Os Estados Unidos sofreram quase 170 mil baixas, das quais 33 mil mortos. A avaliação corrente é que a Coreia do Norte perdeu 20% de sua população: 600 mil civis e 400 mil soldados.

Se ninguém imaginaria repetir isso, por que Kim júnior se transformou numa versão oriental do Coringa de Batman, dando gargalhadas obsessivas a cada novo teste com mísseis de longo alcance, tão maniacamente feliz que até posou com um general andando de cavalinho nele? Isso num regime delirante em que a coreografia oficial dos aplausos muitas vezes tem que ser acompanhada de lágrimas de emoção diante da visão do líder supremo?

Perguntar os motivos de Kim continua a ser importante, mas deixou de ser vital diante dos fatos: a Coreia do Norte tem mísseis de alcance cada vez maior e, agora, ogivas nucleares suficientemente compactadas para ser instaladas neles.

Com razão, o governo Trump decidiu que a era da “paciência estratégica” havia terminado. Por causa do ódio a Trump, as atitudes de John Kennedy durante a Crise dos Mísseis de Cuba têm sido mencionadas como padrão de comportamento de estadista que salvou o mundo de uma guerra nuclear.

Na verdade, Kennedy forçou a União Soviética a recuar e tirar os mísseis instalados secretamente em Cuba com base em ameaças e ultimatos brutais (mais tarde, foi Nikita Krushchev quem explicou o recuo a Fidel Castro, que queria partir para a incineração nuclear).

Kennedy já tinha na sua conta o fracasso da invasão da Baía dos Porcos, quando abandonou os cubanos anti-castristas à própria sorte. Sem contar as várias tentativas goradas de assassinar Fidel.

ROLETA RUSSA

Nada disso indica exatamente um modelo de estadista, mas sim um líder político agindo no mundo real, com as condições que tem à mão, entre erros e acertos. Destes, o maior foi ganhar a mais perigosa roleta russa da história da humanidade durante a Crise dos Mísseis (temperada por negociações secretas e concessões em relação aos mísseis americanos instalados na Turquia).

Por causa da quarentena decretada por Kennedy, que impunha inspeção obrigatória a todos os navios a caminho de Cuba, a Marinha americana disparava cargas explosivas em torno de submarinos soviéticos.

O comandante de um deles suspendeu no último minuto a colocação em posição de disparo de um torpedo nuclear. A força explosiva de cada torpedo era de 15 quilotons, mais o menos a da bomba de Hiroshima.

Foi provavelmente o mais perigoso dos 13 dias de outubro de 1963, quando o mundo esteve tão próximo da destruição nuclear que Robert McNamara, secretário da Defesa de Kennedy, perguntou-se ao fim da primeira semana de tensão máxima se viveria “para ver outro sábado”.

Detalhe: todas as declarações soviéticas na época eram de que os mísseis em Cuba tinham objetivo puramente defensivo.

Imaginem como Kennedy reagiria se Nikita Krushchev saísse declarando que ia mandar “presentes”, “incinerar” ou reduzir a “cinzas” os Estados Unidos?

Kim não pode fazer nada disso, mas também não pode dizer que pretende. Quem coloca no mesmo nível as bravatas perigosas, mesmo que irrealizáveis, do ditador hereditário e as ameaças perfeitamente factíveis, embora altamente indesejáveis se houver outra alternativa, de Trump está, no fundo, escolhendo um vitorioso para a roleta coreana. E não é Trump.

O que Maureen Dowd e a infinidade de outros da mesma escola de antitrumpismo acharia de um mundo em que Kim Jong-Un obriga os Estados Unidos a falar fino?
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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