Paulo Tunhas, professor de Filosofia no Porto e colaborador do jornal Observador,
chama a atenção para algo quase sempre esquecido em termos de política:
o ridículo. Sirva de exemplo a América Latina - particularmente a
Venezuela -, onde não faltam políticos ridículos nem ridicularia. "Quando
o ridículo se repete e se torna por assim dizer um hábito tolerado, de
uma coisa podemos estar certos: o sentimento de impunidade aumenta. E
com o sentimento de impunidade vem inescapavelmente o arbitrário e o seu
costumeiro cortejo de horrores. O que, num primeiro momento, pode
perfeitamente ser insignificante, arrisca-se a, pouco a pouco,
contribuir para a destruição da nossa vida comum":
Cada um, de vez em
quando, vê-se apanhado por uma questão à qual volta repetidamente.
Comigo, de há uns tempos para cá, é a do ridículo em política. Sublinho:
em política. Na longa lista dos ridículos possíveis, a maioria pertence
à categoria geral do indiferente. E há até alguns que podem ascender ao
estatuto do admirável, como no caso do amor, em que o medo do ridículo
se arrisca muitas vezes a condenar os indivíduos à infelicidade eterna.
Mas em política o ridículo possui uma natureza própria, que em certos
momentos se confunde com a do ameaçador.
Nada como um exemplo.
A Assembleia Constituinte venezuelana aprovou no outro dia uma Lei
Constitucional Contra o Ódio. Já o nome é todo um programa. Não que a
legislação sobre as paixões seja propriamente uma invenção do regime do
camarada Maduro. Num certo sentido, toda a legislação visa sempre
condicionar o exercício das paixões ou encaminhá-lo numa certa direcção.
Platão explicou-o na República e a lição não foi esquecida pela
filosofia. O problema não está, é claro, aí. O problema começa com a
ideia de que as paixões podem ser abolidas por decreto. E continua com a
escolha da paixão a abolir. O ódio, como se sabe, opõe-se ao amor. A
Assembleia Constituinte venezuelana vê-se como a fiel depositária desta
última e nobre paixão e como um corpo particularmente habilitado para
detectar e punir tudo o que se lhe oponha. Em vez de “ódio” podia, é
claro, lá estar “mal”. Não há grande diferença entre uma coisa e outra.
Em qualquer dos casos, estamos num plano mítico. O Bem contra o Mal, o
Amor contra o Ódio. E as regras mandam que o primeiro elemento de cada
par destrua, no fim dos tempos, o segundo. A Venezuela vai por óptimos
caminhos.
Tanto mais que a Lei
Constitucional contra o Ódio se apresenta também como uma lei contra o
particular flagelo da intolerância. “A Venezuela põe hoje esta lei à
disposição do mundo. Não exportamos somente petróleo, queremos exportar
paz, amor e tolerância num mundo gravemente ameaçado pelos poderes
imperiais”, proclamou Delcy Rodríguez, a presidente da Assembleia
Constituinte. A exportação do Bem sob as suas várias formas promete. O
problema fica no interior da Venezuela. Porque os fautores do ódio e
apóstolos da intolerância se encontram perfeitamente designados pela
Assembleia Constituinte. Com efeito, a lei esclarece que serão doravante
ilegais os partidos e os meios de comunicação social que não jurem
muito depressinha pelo amor e pela tolerância e que promovam os seus
contrários. E, atenção, a intolerância paga-se caro: vinte anos de
prisão. Sem tanta magnífica tolerância, presume-se que seriam mais.
Esta fantochada pode
certamente fazer rir. O ridículo indiscutível da fantasia cósmica de uma
luta imemorial entre o amor e o ódio terminada por decreto
revolucionário com a vitória do primeiro não convida certamente a
reflexões sérias. Mas, se tivermos em atenção os seus antecedentes
históricos, o riso devia gelar-nos. Não só porque tudo obedece a um
padrão bem estabelecido que sempre presidiu às tentativas de criar um
“homem novo”: o da excisão das “más paixões” do coração dos humanos,
como, por exemplo, a paixão pela propriedade privada. Toda a gente
conhece os exércitos de cadáveres que resultaram do exercício, ainda por
cima condenado ao fracasso. Mas também por outra razão, que se prende
com a natureza própria do ridículo: a contradição ostensiva que a Lei
Constitucional contra o Ódio exibe quando se refere à tolerância. A
intolerância não será tolerada. Não se trata apenas aqui do velho
“paradoxo da tolerância”, tema importante da filosofia política sobre o
qual Diogo Pires Aurélio escreveu há já vários anos, um excelente
pequeno livro (Um fio de nada. Ensaio sobre a tolerância): pode a
tolerância tolerar os seus inimigos?, como estabelecer os limites no
capítulo? Não: aqui há mesmo contradição. A tolerância é definida a
partir do ponto de vista de uma intolerância que pretende nominalmente
eliminar. E funciona como um nome sem substância real, produzido por uma
máquina de palavras. O ridículo é indiferente para quem funciona como
uma máquina de palavras.
E chegamos aqui ao
que me interessa e que extravasa largamente o caso dos bravos deputados
venezuelanos. Tão largamente que este assunto poderia, sem dificuldade,
tornar-se objecto de uma coluna semanal: exemplos não faltariam. O riso
face à contradição patente devia assinalar-nos o perigo. Nestas
matérias, a indiferença face ao ridículo não é apenas sinal da falta
daquele pudor que, para Platão, era uma virtude política eminente. É,
mais afirmativamente, a declaração de um fechamento sobre si que
representa a recusa explícita de nos colocarmos no lugar dos outros.
Certas formas de ridículo político exibem na perfeição essa recusa. O
caminho para o grotesco e, de seguida, para o horror, encontra-se já
traçado. Tudo é possível para quem decidiu não se pôr mais no lugar do
outro.
Há uma extensa
literatura que lida com a questão da mentira em política. Ela deveria
ser acompanhada por uma reflexão sobre o papel do ridículo. Em muitos
casos, é de admitir, ele pode ser insignificante. Os mecanismos
democráticos servem perfeitamente, em princípio, para o conter e para
manter algum do tal pudor de que Platão falava e que é indispensável
para a decência das sociedades. Mas nada é infalível. Não é preciso
lembrar o exemplo de Hitler: quanta gente não o levou, durante um tempo
tragicamente excessivo, a sério? Não é preciso nem talvez seja
conveniente. Há um excesso em Hitler que o torna quase incompatível com a
descrição da nossa experiência política mais comum, por muito que esta
se incline nas piores direcções.
Mas há exemplos
menores que nos convêm melhor. E há sobretudo uma espécie de escala à
qual não nos faria mal estarmos atentos. Quando o ridículo se repete e
se torna por assim dizer um hábito tolerado, de uma coisa podemos estar
certos: o sentimento de impunidade aumenta. E com o sentimento de
impunidade vem inescapavelmente o arbitrário e o seu costumeiro cortejo
de horrores. O que, num primeiro momento, pode perfeitamente ser
insignificante, arrisca-se a, pouco a pouco, contribuir para a
destruição da nossa vida comum. Kant, seguindo o filósofo inglês
Shaftesbury, dizia que o riso provocado é a pedra de toque da má
filosofia. A frase (que se pode, é claro, discutir) pode talvez ser
transportada para o plano político. O ridículo é, à sua maneira,uma
pedra de toque da má política. Rir faz sentido, certamente, mas na
condição de estarmos conscientes de que o pior pode vir aí.
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