MEDIÇÃO DE TERRA

MEDIÇÃO DE TERRA
MEDIÇÃO DE TERRAS

domingo, 31 de dezembro de 2017

2017, ano saboroso.


A coluna semanal de Alberto Gonçalves, no jornal Observador, faz um breve retrospecto do acontecido por lá. Não poupa ninguém, como convém. O panorama revela que há mais em comum entre Portugal e Brasil do que a língua:


Janeiro

Embora os pantomineiros do costume finjam ter visto o povo nas homenagens fúnebres a Mário Soares, a verdade é que as ditas suscitaram sobretudo indiferença. Os motivos serão diversos, mas é inegável que o dr. Soares da liberdade e da democracia fora vítima do dr. Soares antiocidental e “caudilhista” dos últimos anos, longos e humilhantes. O original falecera há muito, e ninguém o avisou. O povo, pelos vistos, estava avisado.

Fevereiro

Em países aborrecidos, as trapalhadas do governo em volta da CGD e do seu novo, e momentâneo, presidente levariam a demissões sumárias. Aqui, levaram o dr. Centeno a explicar-se nas televisões. “Explicar-se” é, claro, força de expressão, que os tremores do homem não deixaram perceber em pleno as frases sem nexo com que tentou brindar-nos. O prestígio internacional do dr. Centeno talvez tenha começado nesse instante. Por cá, a oligarquia reduziu a farsa da CGD a “tricas”, destinadas a esconder os “verdadeiros problemas dos portugueses”. Não há nada a esconder: por regra, os verdadeiros problemas dos portugueses são as criaturas que falam nos “verdadeiros problemas dos portugueses”.

Março

O país oficial indignou-se com a fuga de 10 mil milhões para “off-shores”, uma notícia requentada do “Público” que, apesar de imaginária ou em última instância irrelevante, procurava mostrar a vileza do governo de Pedro Passos Coelho. Quase em simultâneo, o país oficial não se indignou com a Grande Fome ucraniana de 1932-33, cuja condenação no Parlamento foi rejeitada com a abstenção do PS e a rejeição dos dois partidos comunistas. Salva-se a coerência “colectivista”, que prefere ver 40 milhões de pessoas sofrerem às mãos do Estado do que permitir que meia dúzia se livre dele.

Abril

Uma avioneta caiu em Cascais e foi o pretexto (como se fosse preciso um) para o prof. Marcelo irromper no local da queda e em todas as reportagens alusivas. Para a TVI, o prof. Marcelo evitou o pânico. Para o prof. Marcelo, podia ter sido muito pior. Podia, sim senhor: caso o prof. Marcelo estivesse retido numa sessão de “selfies” em Valença do Minho, os cascalenses ficariam desorientados e propensos a lançar-se à Boca do Inferno em quantidades consideráveis. Assim, só houve cinco mortos, no mínimo motivo de celebrações colectivas. E imensos afectos.

Maio

Portugal, Portugal em peso, ganhou o festival da Eurovisão, “certame” de avassalador gabarito. Após décadas de tentativas, mostrámos enfim que somos os maiores ou, pelo menos, tão bons quanto os melhores, leia-se o Azerbaijão, a Sérvia, a Estónia, a Letónia, o Mónaco, o Luxemburgo, a Grécia, a Turquia, etc.

Junho

Incêndios florestais arrasaram Pedrógão Grande e parte dos concelhos vizinhos. Sempre oportuno, às primeiras notícias o prof. Marcelo assegurou que fora feito tudo o que era possível. O dr. Costa, uma ministra macambúzia e um secretário de Estado disseram coisas ainda mais tranquilizadoras. No final, contaram-se, pelos vistos por baixo, 64 mortos, o 16º pior evento do género na História e o terceiro neste século. Para os poderes públicos, foi igual a nada, ou uma dispensável chatice que os obrigou a trabalhos para apurar quem se queimava (sem trocadilho) menos com o assunto. Pouco dado a trabalhar, o dr. Costa partiu para a praia.

Julho

O país viu-se informado de que desapareceu uma resma de armamento da base militar de Tancos. Mas o ministro da Defesa fez questão de acrescentar, primeiro, que o roubo não foi dos maiores de sempre na Europa. Depois, que o roubo se calhar nem aconteceu. Por fim, que o material roubado apareceu quase impecável. O mal destas notícias é chegarem a ser notícia. Felizmente, as chefias da Protecção Civil, rigorosamente escolhidas entre os melhores amigos do dr. Costa, proibiram os bombeiros de opinar sobre os incêndios. Ao esclarecer que “a informação devidamente organizada e estruturada é uma mais-valia para todos”, o dr. Costa exibiu relativa familiaridade com a “teoria da imprensa” de Lenine e maior familiaridade com o “Público”, o “DN”, a RTP, a TVI e a SIC. Essa história da liberdade é uma falácia burguesa.

Agosto

A xenofobia é má? Depende. Se for dedicada àqueles que, nem sei bem porquê, passeiam em férias por este abençoado país, é altamente recomendada. Em Agosto, os portugueses que, a julgar pelo Instagram, fazem turismo em praias exóticas ou outros lugares paradisíacos, não deixam de se sentar ao computador, a lastimar os estrangeiros que fazem turismo no Porto e em Lisboa, no Douro e nos Algarves. É uma actividade como qualquer outra, com a vantagem de despertar a atenção dos poderes centrais, locais e adicionais, todos empenhados em dificultar a entrada de incautos em Portugal ou, no mínimo, infernizar-lhes a estadia. Sujeito a incontáveis taxas e taxinhas, para não falar das greves dos transportes, do preço dos combustíveis e das restantes alegrias da vida lusitana, o turista fica a perceber o que os guias apenas prometem: a realidade indígena. Fica também vacinado.

Setembro

Os avanços civilizacionais continuam. Após o respectivo sindicato ser tomado pelo PCP, os funcionários da Autoeuropa entraram em greve, coisa nunca vista por ali. Entretanto, já prometeram outras greves e é certo que não descansarão enquanto os direitos dos trabalhadores não forem devidamente acautelados e os trabalhadores acabarem na fila do desemprego. O socialismo não se constrói sem umas dorzinhas pelo meio – e um sofrimento lancinante no fim. Parece absurdo, mas é absurdo.

Outubro

Por inúmeras causas, que inúmeros especialistas descrevem na televisão, metade do país voltou a arder. Desta vez, a quantidade de mortos não passou dos 45, insignificância que, somada aos 64 de Junho, serviu para demitir uma ministra. Por este irresponsável andar, não tarda que 200 cidadãos carbonizados demitam dois ministros, 300 baixas casuais demitam três ministros, 500 ocorrências a lamentar demitam um terço do governo e 1000 infelicidades provoquem – o diabo seja cego, surdo e mudo – a demissão do próprio dr. Costa. Não admira que Nádia Piazza, a mulher que perdeu o filho em Pedrógão Grande e, estranhamente, não ficou radiante, seja insultada com regularidade por certo PS: os danos colaterais não podem comprometer a felicidade da pátria.

Novembro

A saída de Pedro Passos Coelho foi uma alegria e um alívio para a frente de esquerda, para os comentadores de “direita” que votam no PS e, aparentemente, para a “direita” propriamente dita. Num ápice, o PSD arranjou dois candidatos à sucessão. Por coincidência, ambos parecem mais empenhados em demarcar-se do antecessor do que do dr. Costa. Ninguém quer carregar a fama de “neoliberal”. Mas não seria mau que, um dia, nos tocasse um bocadinho do proveito.

Dezembro

Em competição renhida com um luxemburguês, um eslovaco e uma letã, o importantíssimo dr. Centeno alcançou a importantíssima chefia do importantíssimo Eurogrupo. Numa notícia não relacionada, a dívida pública manteve-se em níveis impecáveis. Noutra notícia não relacionada, todos os partidos, excepto o CDS, aprovaram a isenção do IVA para os seus negócios. Numa terceira notícia igualmente solta, a autarquia da capital investiu 57 mil euros em cartolinhas para o Ano Novo. Uma última notícia avulsa: o Ano Novo tresanda a velho.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

Nenhum comentário:

Postar um comentário