Tenho
tantas saudades da universidade quanto da varicela, com a agravante de
que, ao contrário do que sucedeu com a segunda, ainda não esqueci a
primeira. Lembro-me dos professores, na maioria semi-alfabetizados.
Lembro-me das aulas, repetições de cartilhas caducas e puras
alucinações. Lembro-me das “referências teóricas”, quase sempre
maluquitos franceses, argentinos e até portugueses. Lembro-me das
ocasiões em que me perguntei o que fazia ali. E lembro-me de desistir de
fazer: a partir de certa altura, decidi dedicar-me a conversas com um
punhado de colegas, nas horas livres e nas restantes.
Passei
os últimos três anos do curso no café vizinho, a trocar impressões,
livros e cassetes. Ao longe, no interior de um barracão lindíssimo,
decorriam prelecções fascinantes em redor de trabalhos com as palavras
“subsídios” ou “contributos” no subtítulo. À aproximação dos exames, eu
folheava anotações alheias e fotocópias de maoistas parisienses,
despejava o entulho nos testes e, menos devido à inteligência própria do
que à boçalidade daquilo, obtinha uma nota distinta. Um magnífico dia, o
suplício acabou. O vetusto barracão emitiu um diploma em pergaminho a
declarar-me licenciado. Por mim, nunca levantei o diploma e jurei,
embora não fosse preciso, que a experiência académica terminaria ali.
É
verdade que a minha “formação” (digamos) aconteceu em sociologia,
matéria propensa ao burlesco. Nos anos seguintes, porém, aprendi (a
aprendizagem é um processo) que, por incrível que pareça (e parece), há
pior. Não desejo a ninguém o contacto directo com a realidade: um
passeio pelos sites dos “estabelecimentos” disponíveis, com consulta dos
cursos disponíveis, dos programas disponíveis e dos docentes
disponíveis, é suficiente para esclarecer os incautos. Se os incautos
insistirem, eles que se inscrevam em certas coisas que há por aí.
Não
valeria a pena dar exemplos. Mas dou um. Nas últimas semanas, causou
escândalo a notícia de que Pedro Passos Coelho iria providenciar lições
num tal Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da
Universidade de Lisboa (ISCSP). As patrulhas ideológicas, sob a forma
dos professores que subscreveram um protesto alusivo, correram logo a
chamar a atenção para a falta de credenciações do ex-primeiro-ministro.
Conseguiram chamar a atenção para a falta de juízo de quem confunde
educação com o evangelismo das “causas”. Na tentativa de denunciar uma
hipotética fraude, recordaram a fraude real a que, com as excepções da
praxe (sem trocadilho), se chama “ensino superior”.
Dos
indignados, o mais “público” é talvez o deputado, ou antigo deputado,
socialista Miguel Vale de Almeida. Dos estudos que publicou, destaco
“Ser mas não ser, eis a questão. O problema persistente do essencialismo
estratégico”; “A teoria queer e a contestação da categoria ‘género’” e
“O esperma sagrado: algumas ambiguidades da homoparentalidade em
contextos euro-americanos contemporâneos”. Cito um resumo do último,
escarrapachado na página “Ciência-IUL – A excelência da investigação e
ciência no ISCTE”: “Igualmete (sic), quanto menos provisâo (sic) legal
exista, menos parece haver una cultura de como fazer e proceder em
situaçoes (sic) de disputa de paternidade entre gays e lésbicas,
assistindo-se ao recurso ou à normativade (sic) legal, ou à
normatividade moral (e necessariamente heteronormativa (sic),
androcêntrica e patrilinear) a ela associada.” Concedo uma pausa para o
aplauso da forma e do conteúdo. E depois um minuto de silêncio para
evocarmos o abaixo-assinado e reflectirmos na “dignidade dos
profissionais da ciência e do ensino”.
O
problema não é o dr. Vale de Almeida achar que Pedro Passos Coelho não
serve para leccionar na universidade. O problema é o dr. Vale de Almeida
achar que o dr. Vale de Almeida serve. Outro problema é a universidade
concordar. E o problema maior é a crença generalizada de que a
universidade – a exacta universidade que aceita sumidades como o dr.
Vale de Almeida – é um abrigo de inquestionável erudição. E de
“prestígio”. Pela parte que me toca, só não escondo que frequentei
semelhante antro na medida em que seria ridículo, e provavelmente
escusado. Mesmo assim, inúmeros compatriotas ostentam as habilitações
com orgulho. E uma razoável quantidade finge habilitações com empenho.
Já é
rotina. De vez em quando, destapa-se um político que, a bem do gabarito,
falsificou o currículo. Esta semana, o destapado foi um Feliciano
Barreiras Duarte, pelos vistos o novíssimo secretário-geral do PSD.
Evito os detalhes, entretanto divulgados com abundância, e noto apenas
que, em lugar de inventar uma licenciatura, o prof. dr. Feliciano optou
por inventar um emprego numa universidade californiana, a de Berkeley.
Ah, Berkeley… Também andei por lá – durante dez minutos, perdido após
escolher a saída errada para o aeroporto de São Francisco. Ao que
consta, o prof. dr. arq. Feliciano nem isso: as suas conexões à
instituição especializada em censurar oradores pró-Trump são meramente
platónicas, o bastante para definir um carácter e, em Portugal, uma
carreira.
Repleta
de maluquices (“…tem 21 livros publicados, prefaciou vários trabalhos de
investigação, foi conferencista e moderador em 164 conferencias,
seminários e afins, publicou cerca de 750 artigos e cronicas em jornais e
revistas, e tem variadas intervenções no plano profissional,
extraprofissional, publica, política e de outras tipologias”), dadaísmo
(“…a elaboração deste relatório, com os fins e objectivos anteriormente
referidos, pretende-se que seja consabido, o relacionamento entre a
primeira e a segunda parte do mesmo, com a evidência principal, que de
entre a multiplicidade do currículo do seu autor, poderá sobressair e
outrossim destacar, o fio condutor de que…”) e desafios à língua (ver
acima), a “Conclusão” da tese de mestrado do prof. dr. arq. juiz
Feliciano, avaliada com 18 valores pela ex-ministra dos incêndios, é um
regalo.
A moral
da história é que, com frequência, um percurso académico simulado não
produz resultados muito diferentes dos percursos académicos autênticos.
Sobretudo no vago universo das “humanidades”, onde a distância da
trafulhice à pertinência é subtil, não há escassez de vultos incapazes
de amanhar uma redacção da “primária”. Curiosamente, essas limitações
não suscitam engulhos até ao momento em que o vulto saltita para a
política, por acaso das raras áreas do saber que não carece de saber
nenhum. Quem a sabe toda é o bastonário da Ordem dos Médicos, que há
tempos, por vergonha, pediu alternativas ao tratamento por “dr.”. O
homem tem a mania e tem razão.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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