É bastante duro, para
não dizer impossível, ser ao mesmo tempo liberal e professor de
Ciências Sociais no Brasil. Vida inglória a do professor que leciona num
curso de humanidades e ousa proclamar-se publicamente “de direita”. O
professor de Ciência Sociais que ousa questionar a cartilha
marxista-gramsciana predominante e se recusa a se comportar como um
intelectual orgânico em sala de aula enfrenta duras penas: é tachado de
reacionário por muitos colegas, torna-se alvo de risadinhas e fofocas na
sala de professores e frequentemente é punido com a perda de
disciplinas e prejudicado em bancas de seleção para muitas universidades
públicas por não integrar nenhuma das panelinhas
ideológico-partidário-sindicais que dominam os corpos docentes nessas
instituições.
Digo isso por
experiência própria. Em 2004, durante um evento universitário alusivo
aos 40 anos do golpe de 64, arrisquei-me a questionar os propósitos
democráticos e libertários dos grupos que apoiavam João Goulart e dos
que, após a tomada do poder pelo militares, organizaram a insurgência
armada. Tinha ao meu lado opiniões de alguns historiadores e cientistas
sociais e entrevistas de ex-integrantes das fileiras da resistência.
Esclareci então que não propunha esse olhar para justificar nada a
respeito da ditadura militar. Mas de nada adiantou. Fui alvo da reação
agressiva e verborrágica de um dos integrantes da mesa (um professor
mais experiente) que comparou o cenário do pós-64 com o de uma “guerra”
para buscar uma justificativa moral para atos guerrilheiros de grupos
armados, mesmo os que, sabidamente, atingiram civis inocentes, que nada
tinham que ver com a repressão. Na plateia, outros professores apoiaram a
reação do colega e vieram me censurar ao final do colóquio e revelar
desapontamento comigo. Corria o ano de 2004, era professor universitário
havia pouco mais de três anos e desde então me retraí para evitar ser
repelido.
Esse singelo episódio
é uma boa ilustração do ambiente repressivo que, diariamente,
constrange inúmeros professores liberais, aos quais é imposta uma lei de
silêncio quase marcial, por causa do temor de possíveis retaliações.
São professores que dependem exclusivamente do magistério para
sobreviver e, por essa razão, não podem expor abertamente o que pensam
em redes sociais, em congressos, em seminários, em entrevistas de
emprego ou em processos seletivos, especialmente para instituições
públicas.
Não me referi à sala
de aula porque esta merece uma atenção especial. Para os professores
marxistas-gramscianos, a sala de aula é um espaço de desenvolvimento do
pensamento crítico. Até aí, nada demais. Quem poderia discordar disso? O
problema começa quando passam a pregar para os alunos que a única forma
de aprender a ser crítico é a partir do receituário conceitual e
ideológico em que acreditam. Daí para a doutrinação é um pulo, uma mera
formalidade. Por mais maduros e esclarecidos que os jovens de hoje
sejam, quem consegue resistir criticamente ao sonho de mudar o mundo e
de corrigir todas as injustiças existentes, a começar pelas diferenças
de classe? Quem resiste a culpar algo (o capital) ou alguém (o
imperialismo americano, a burguesia, etc.) pelas mazelas universais?
Funciona à perfeição o “canto da sereia”. E professores doutrinadores
sabem como tirar proveito.
Para muitos dos
professores marxistas-gramscianos, a impossibilidade de neutralidade
axiológica representa, parafraseando o slogan de James Bond, uma
“licença para doutrinar”. Funciona como uma espécie de álibi ou
salvo-conduto para exercer sua militância travestida de atividade
pedagógica, sem nenhum peso na consciência. Como estão convictos de que
conhecem intimamente a fórmula para a redenção da humanidade e de que
detêm o monopólio da virtude, naturalizam o processo de aliciamento
ideológico que diariamente é realizado em grande parte das escolas e
universidades do Brasil. Convocam alunos para passeatas e panfletagens
de partidos, candidatos e sindicatos, sem a menor cerimônia.
Pressionam-nos a se envolver e a apoiar agendas de movimentos sociais de
esquerda, dentro e fora da sala de aula. Tudo sem jamais oferecer
contrapronto digno de nota e confiança, nos conteúdos que supostamente
cumprem como profissionais de magistério.
Diante de ambiente
tão inóspito, não surpreende que em 2018 muitos cursos sobre o “golpe de
2016” estejam sendo oferecidos em universidades brasileiras. O
panfletarismo ganha aparência de ciência normal nas mãos de
professores-militantes. Regras das mais básicas da metodologia
científica como a de não tratar hipótese como tese são simplesmente
ignoradas.
Numa rede social,
cometi a ousadia de transmitir a um professor que divulgava um desses
cursos minhas restrições a tratar como inconteste que o impeachment de
2016 foi um golpe. Expus que o mínimo a esperar, como ponto de partida,
seria garantir espaço para o contraditório a partir de uma pergunta
inicial que poderia coincidir com o título do curso – por exemplo, “O
impeachment de 2016: normalidade institucional ou golpe?”. Tal atitude
permitiria que adeptos das duas versões pudessem dialogar e confrontar
suas posições, chegando às suas próprias conclusões, sem maiores
direcionamentos. Ainda mencionei as opiniões de um amplo leque de
juristas, historiadores, escritores, jornalistas e intelectuais em
geral, do Brasil e do exterior, para os quais o impeachment foi um ato
perfeitamente legal e constitucional.
Recebi respostas
muito “delicadas e receptivas” que prefiro não descrever aqui. Mas, se
não foram das mais elegantes, revelaram-me claramente o que acontece
quando narrativas com interesses específicos são elevadas ao patamar de
História e ganham status acadêmico. O golpe é aqui e agora.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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