MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

domingo, 22 de abril de 2018

Que cuidado é esse?: População de rua no Rio chega a mais de 4 mil pessoas


Abrigo é buscado na ação de voluntários e em prédios como o da Defensoria Pública

Jornal do Brasil REBECA LETIERI, rebeca.letieri@jb.com.br

Vestindo camisa polo e bermuda, barba e cabelo brancos bem cortados, e uma pré-disposição para falar como se aguardasse a entrevista, Mustafá, 66 anos, conta que para viver só precisa de “um pedaço de papelão, uma muda de roupa, e um jornal”, enquanto aponta para os pertences, às 20h de uma quinta-feira comum, na calçada em frente à Defensoria Pública do Estado do Rio, no Centro: “Aqui nós comemos, às vezes, até melhor do que muita gente na favela”. Isso porque toda noite tem van passando na região oferecendo comida a Mustafá e seus colegas de rua. Para o digitador que vive há três anos sem teto, a calçada virou o lugar mais seguro para quem se entregou à bebida e trocaria tudo por algumas cervejas. Família e casa, inclusive: “Aqui não tenho isso, porque não tenho como beber o dia inteiro”.
Com 38 anos, 14 como moradora de rua, Alexandra Maciel pensa e age diferente. Se pudesse realizar um desejo, seria reencontrar as filhas no Jardim América, na Zona Norte do Rio. E ao contrário de Mustafá, não se fixa num único ponto para dormir. “Vivo por aí. Toda semana, apareço lá naquela igreja do Centro. E sempre que posso venho em Botafogo, ver minha mãe, que também é da rua”, conta a empregada doméstica, que carrega apenas uma bolsa com os documentos e alguns pertences. Das filhas, que já estão “velhas” segundo ela, só sabe o pouco que tem coragem de perguntar a ex-vizinhos: “Uma casou tem pouco tempo. Mas não querem me ver, porque moro na rua. Têm vergonha de mim”.
Morador de rua em frente ao prédio da Defensoria Pública do Rio: maioria é formada por homens
As histórias de Mustafá e Alexandra se assemelham às de outras 4.628 pessoas em situação de rua na cidade. O rompimento familiar é a principal causa da vida sem teto. Segundo dados de 2016 da Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio, eles têm entre 25 e 59 anos, cerca de 80% são homens, 75% têm o ensino fundamental, 14%, o médio e 2%, o superior. Bebida e drogas, desemprego e orientação sexual — a mais comum entre os jovens — são outras razões que as levam ao relento. “Tem muito jovem LGBT na rua porque foi expulso de casa”, conta a defensora pública Carla Beatriz Nunes.
Responsável pela pasta no órgão que atende, prioritariamente, uma população de vulnerabilidade social, Carla explica que essa procura pelo espaço em frente à Defensoria não é à toa nem aconteceu de uma hora para outra. “Desde as Olimpíadas, quando nós criamos um questionário e acompanhamos essas pessoas que estavam sofrendo um choque de ordem, para higienizar as ruas, tanto o poder público, quanto os moradores de rua, passaram a nos respeitar”, afirma. O questionário, segundo ela, visava, entre outras coisas, investigar violações de direitos humanos cometidos por agentes públicos: “Não era só agressão. Era todo tipo de humilhação injustificável, como pedir para abaixar as calças e tacar spray de pimenta nas partes íntimas. Isso ainda existe hoje, mas diminuiu muito desde que começamos a fazer barulho”.
Distribuição de comida em rua do Centro: voluntários criaram rede para integrar ações
Por isso, seu Mustafá acredita que, na porta da Defensoria, ninguém vai mexer com ele: “Aqui tem câmera em tudo quanto é lugar. E a gente já reconhece não só funcionário daí de dentro, como quem dorme aqui do lado de fora”. Outros apostam nas escadarias da Alerj ou nos arredores do Hospital Souza Aguiar. A Defensoria Pública, entretanto, não é o único órgão desvinculado da administração municipal a cuidar das pessoas em situação de rua. Mapeados, existem 30 organizações não-governamentais, projetos e pastorais fazendo o serviço voluntário diariamente em todos os cantos da cidade.
Essa rede serve, principalmente, para organizar estratégias mais efetivas de alcance a esse grupo. “É importante trabalhar em conjunto para que não haja repetições. Se um projeto costuma passar em frente à Defensoria por volta das 20h, então não vou passar lá oferecendo comida nesse horário”, explica Ivaniso de Paula Elias, do Instituto Lar, que trabalha há mais de 20 anos nessa causa. O Lar visa, sobretudo, capacitar pessoas nessas condições. “Às vezes, tem uma pessoa ali com uma profissão, e que não tem vício. Tudo que ela precisa é de um empurrão. E esse ambiente da rua não ajuda. Quanto mais tempo essa pessoa passa na rua, mais ela se acomoda e não sai”, conta o técnico de enfermagem. Para isso, o instituto oferece aos desamparados um conjugado, alugado por doações, e serviços como atendimento psicológico e  atividades em grupo, além de ajuda para retirar documentos e montar currículo profissional. “Acreditamos no potencial das pessoas. Todo mundo tem direito a uma moradia e a capacidade de reorganizar a própria vida”, afirma a engenheira de produção e diretora do Lar, Mariana Machado, 26 anos.
O chuveiro móvel do Ores, no Largo da Carioca: autoestima
Para a administradora Priscila Mello, 33 anos, “já era ótimo matar a fome e a sede de alguém. Mas ser responsável por uma nova oportunidade de vida é indescritível”. Ela é fundadora do Vidas Invisíveis, projeto que visa a reintegração social e familiar de pessoas que vieram ao Rio em busca de melhores condições de vida e acabaram em situação de risco: “Somos acionados quando identificam pessoas com o perfil que ajudamos. A partir daí nós as encaminhamos de volta para casa, financiando roupas, sapatos, alimentação e passagens”. Para a voluntária, o planejamento estratégico do projeto é um sucesso: “Em menos de um ano, dentre os quase cem reintegrados, apenas um retornou. Foi a única pessoa com que não fizemos uma triagem”.
Já o Projeto Ruas estimula a participação de moradores dos bairros onde atua. O principal ponto de encontro são as chamadas rondas, rodas de conversa que acontecem toda terça-feira à noite, simultaneamente, em Botafogo, Copacabana e Leblon. A cada semana um novo tema é debatido para levar informação e reflexão. “Quando a decisão de mudar parte do próprio indivíduo, as chances de reinserção na sociedade aumentam bastante”, conta Larissa Montel.
Oficina de violão do Projeto Voar: arte como força de transformação
Na ronda de terça passada, Ricardo Tavares observava os envolvidos em roda. Ele também lidera uma inciativa, chamada Ores, Organização de Reintegração e Estímulo à Socialização. Empresário de 51 anos, ele conta que começou com o banho de cidadania em 22 de dezembro e, desde então, não conseguiu parar mais. “Eles eram invisíveis aos meus olhos. Assim como eu passava, outros tantos ainda passam reto, ou longe deles nas ruas, porque exalam mau odor. O banho resgata a dignidade. E é justamente através dele que a gente ganha a confiança de um por um, e tem a oportunidade de mostrar que existe um outro caminho possível”, explica.
As cerca de 200 pessoas que usam o serviço diariamente são recebidas com sanduíches de mortadela e guaraná natural. Depois do lanche, podem tomar banho e vestir uma roupa limpa — as usadas são descartadas. Quem quiser ainda pode cortar o cabelo e fazer a barba no local em que fica instalado o banheiro móvel, no Largo da Carioca, no Centro, a partir das 7h da manhã. Montado sobre um chassi de duas rodas e transportado por um carro, o banheiro móvel tem cabines adaptadas e conta com o apoio do comando local do programa Centro Presente, que libera o uso do ponto de água do posto policial para abastecer os chuveiros.
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A VOLTA POR CIMA
Das ruas para balcão de bar 
Ex-morador de rua, empresário, de 52 anos, Donel Soares de Oliveira é gaúcho, mas foi na capital paulista que sofreu sua maior derrota. “Eu tinha uma empresa de refrigeração. Na época, estava reformando quatro padarias. Com uma média de 50 pessoas trabalhando para mim e com quatro carros na garagem. Durante esse processo, um dos donos de padaria ficou sem grana para finalizar a reforma e achou melhor me queimar com a equipe. Foi a quebra que eu tive”, explicou, enquanto desviava o olhar para as mãos em movimento. “Quem me ajudou a pagar passagem para o Rio foi o Agnaldo Timóteo”, revelou. “Um dia eu quero ir ao show dele, mas ainda não pude”.
Donel Soares em seu bar, na Tijuca: “O trabalho não para nunca”
Donel veio para o Rio sem nenhuma perspectiva ou planejamento, depois de passar até por uma tentativa de suicídio em São Paulo. “A cabeça da gente vira”, explica, sem dar detalhes.
Em 2012 já no Rio, passou 60 dias na rua, a maioria deles em frente ao Hospital Municipal Souza Aguiar, na Praça da República, Centro da cidade, outro ponto de referência para moradores de rua. “Foi quando eu conheci o Ivan”, conta com um sorriso tímido no rosto, de quem vai revirar toda a história. Donel estava no Instituto Lar, na Rua do Senado, 200, em um sábado para o café da manhã, quando o técnico de enfermagem Ivaniso de Paula Elias entrou no salão, que recebe mais de 40 pessoas por sábado, e perguntou: “Quem quer trabalhar?”. A resposta foi instantânea: “Eu”, gritou Donel. “Fomos direto para o Riocentro entrar em contato com uma produtora de eventos que seu Ivan conhecia. Ele me arrumou um trabalho, um celular e um lugar para ficar por 15 dias, e aí a cabeça começou a voltar para o lugar”.
Depois disso, ele trabalhou como garçom no Itajubar Restaurante, na Tijuca, virando, em seguida, dono de bar. “A vida te surpreende de tantos jeitos que, se não continuar batalhando e trabalhando, você, sozinho, não anda”, frisou Donel, que não tem filhos nem é casado.
Para ser dono do bar na Rua Mariz e Barros, 840A — o que ocorreu em 2014 — Donel contou com a ajuda do amigo Ivan e da irmã, que finalmente veio ao Rio ao descobrir a vida que ele levara nas ruas. A mãe de Donel não sabe até hoje do drama do filho. “O trabalho não para nunca. E todos os dias eu dou graças a Deus por ter dado a volta por cima”, diz, juntando as mãos para o alto e completando: “De vez em quando eu levo umas marmitas para as pessoas que ficam ali do outro lado da rua. Nunca vou esquecer o que fizeram por mim”.
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Câmara pretende criar Comitê 
No discurso após a vitória nas eleições municipais de 2016, o prefeito Marcelo Crivella (PRB) disse: “Vamos cuidar das pessoas”. A realidade nas ruas, porém, divide opiniões. Para a assistente social, Cássia Santana, de 53 anos, que já trabalhou tanto em ONGs, como na Prefeitura do Rio,  “o que falta do poder público é o monitoramento”. Já a defensora pública Carla Beatriz identificou avanços: “Entre eles, a nova sede do Centro Pop — um centro de assistência mais estratégico para a população de rua —,  sem a rigidez do abrigo, que existe em toda cidade, mas estava em falta no Centro”. O atual impasse, segundo ela, é com relação ao Comitê Intersetorial.
Em setembro de 2017, foi aprovado, em primeira discussão, o Projeto de Lei 1.543/2015, do vereador Reimont Luiz (PT), que institui a Política Municipal para População em Situação de Rua e cria o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua. Em março passado, Crivella vetou o PL. O novo secretário municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, João Mendes, alegou, em nota, que “embora o PL tenha sido vetado, segue em discussão na Prefeitura projeto similar sobre política voltada para a população em situação de rua, inclusive prevendo a criação do Comitê Gestor Intersetorial”.
Outra polêmica é com relação ao número de pessoas em situação de rua. Em janeiro, a secretaria apontou uma drástica redução: de 14.279 para 4.628. “Em meio ao cenário econômico brasileiro, com as altíssimas taxas de desemprego e inflação, é impossível considerar que a população em situação de rua no Rio diminuiu. Basta circular à noite nas ruas do Centro do Rio que é visível o expressivo aumento”, afirma Priscila Mello, do Vidas Invisíveis.
A secretaria rebateu as críticas: “na realidade, tal número não se referia a uma contagem de pessoas em situação de rua, mas sim a um número acumulado anual de pessoas abordadas.(...) A metodologia utilizada em 2018 é a mesma utilizada nos EUA e Canadá e reduz a possibilidade de contar a mesma pessoa mais de uma vez, bem como mostra a realidade de um único dia na cidade, evitando assim as dinâmicas migratórias e sazonais que possam ocorrer. Cabe registrar também que a atuação das equipes técnicas dos diversos equipamentos da Secretaria não se restringe à tarefa de acolher as pessoas que se encontram em situação de rua, mas de compreender a complexidade da dimensão social que perpassa tal condição, se fazendo necessária a percepção crítica dessa realidade. Por isso, os profissionais que atuam com esse público desenvolvem uma escuta qualificada, viabilizando o empoderamento e conhecimento de seus direitos, bem como a mobilização de recursos para o enfrentamento de situações adversas e a luta por interesses comuns”.

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