Por Jorge Caldeira.
Em ensaio exclusivo para o Estado da Arte,
do Estadão, um dos mais renomados historiadores brasileiros analisa o
quadro institucional e político do país neste ano eleitoral.
A frase me veio à
cabeça, inteira e violenta, num momento de significativa coincidência.
Meus olhos estavam fixos na imagem elevada de d. Pedro II, meus ouvidos
escutavam pela quarta ou quinta vez uma frase com o mesmo sentido: “O
Brasil segue adiante salvo pelo Judiciário, que está cumprindo seu papel
de Poder Moderador”.
Caídos do transe,
meus olhos baixaram para a cena em redor, a cerimônia na qual Celso
Lafer, muito merecidamente, recebia o título de professor emérito da
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Percorreram com certa
inquietude os arredores, enquanto procurava me certificar que estava
realmente no tempo presente do século XXI.
A sensação de mistura
com outros tempos é algo muito comum para quem, como eu, lida quase
permanentemente com a história do Brasil. Os estudos constantes do
passado trazem volta e meia alguns gatilhos especialmente poderosos para
esta mistura. “Poder Moderador”, por exemplo. Por muitos anos este foi o
objeto central de meus estudos, consubstanciados no doutorado em
Ciência Política publicado em 1998 com o título de A Nação
Mercantilista. Este era o poder privado do monarca, encarnado de maneira
forte na imagem de d. Pedro II para a qual eu olhara. Imperial, imensa e
dominante, colocada no nicho central do salão nobre da faculdade, como
se fora num altar.
Quando os olhos
baixaram voltei à realidade – mas não à quietude. A plateia ouvia os
discursos como se fosse normal e positivo que o Judiciário ocupasse o
papel de Poder Moderador. Meu estranhamento com a plateia que agora
revia com o olhar não podia ser maior. Pensava: como, na casa em que se
ensina a defesa da lei, há tanta identificação com algo que já não está
na lei há 120 anos? Recompus-me: não era bem eu que estava no passado,
algo acontecia ali.
Comecei a olhar ao
redor buscando os signos opostos, aqueles da legalidade republicana sem o
Poder Moderador. Não encontrei de imediato nenhuma imagem, de modo que
foi preciso me valer um pouco da imaginação. Lembrei-me da estátua de
José Bonifácio, o Moço. Foi mandada fazer pelos alunos da faculdade num
momento muito especial.
Numa sessão do
Senado, em 28 de abril de 1879, ele começou um discurso defendendo o
direito de voto dos analfabetos – garantido pela Constituição de 1824 e
praticado sem problemas, este direito básico estava sendo retirado
através de um conjunto de regulamentos burocráticos (coisas do tipo
exigir petição escrita de próprio punho para a inscrição como eleitor).
Nesse dia a sessão
foi bem diferente da modorra senatorial descrita por Machado de Assis em
“O velho senado”. Os eleitores que iriam ser excluídos lotaram as
galerias, aplaudiam cada frase do senador. A mesa suspendeu a sessão,
mas não o movimento. O discurso acabou na rua, para onde o senador foi
carregado pelos braços dos presentes. O impacto em São Paulo foi tão
grande que os alunos, muitos deles abolicionistas como o mestre,
começaram a juntar dinheiro para mandar fazer a estátua. Ela ficou
pronta em 1890, no exato momento da proclamação da república. Foi
colocada na rua, num pedestal enorme, bem na porta da faculdade. Ficou
olhando o direito de fora do templo da legalidade, como os eleitores
analfabetos, excluídos também pelo novo regime. Arrancada dali nos
tempos da ditadura Vargas, foi deixada num depósito – e sequestrada
pelos alunos, que arranjaram um nicho para ela na portaria do prédio.
Esta lembrança me
levou a outra constatação. Um aluno da faculdade chamado Prudente de
Moraes comandou, como presidente do Senado, o trabalho constituinte de
1891 que eliminou o Poder Moderador da lei. Mais ainda, foi o primeiro
brasileiro a ser eleito presidente da república pelos cidadãos, terminou
seu mandato, passou o poder adiante e voltou a viver como simples
cidadão, advogado na Piracicaba natal que fazia questão de levar
pessoalmente suas petições aos juízes, como prova de respeito por sua
autoridade. Não vi lembrança dele, nem mesmo simbólica e nem mesmo
percorrendo o prédio depois da cerimônia – mas sua figura inspira a
sumaríssima apresentação do modelo legal do poder democrático que faz
parte da lei brasileira quando este regime impera.
Nesse modelo os
políticos eleitos são essencialmente figuras de trânsito. O poder maior,
a soberania, pertence aos cidadãos. Sua participação na direção do
Estado se faz através de representantes eleitos, que são essencialmente
intermediários, mediadores. Buscam votos suficientes de cidadãos para
que expressem a vontade da maioria, recebem cargos de mando no Estado
para fazer valer esta maioria. A eficiência na prestação do serviço de
fazer valer a vontade da maioria é testada periodicamente nas urnas.
Aqueles que não são reconfirmados ou terminam mandatos para os quais não
podem ser reeleitos voltam a ser simples cidadãos.
Este o modelo no qual
o poder soberano vem de baixo, o elevado ao poder no Estado vive apenas
um interregno – e pelo qual o Estado como um todo deve servir à
sociedade e à maioria. Certamente está impregnado na mente da maior
parte das pessoas, até porque é o que está na lei. Mas é também o modelo
para o qual meus olhos não achavam signos na ocasião. Essa ausência
tornou inevitável a impressão de que o Poder Moderador, extinto na lei,
vivia naquele momento em que meus olhos baixaram para a cidadania ao
redor, como se ainda fora nos tempos do Império – o que exige outra
explicação sumária.
Duas soberanias
A Constituição de
1824 definia duas soberanias. Uma era a soberania popular, que se
expressava nacionalmente através dos representantes eleitos para o
Parlamento. Outra era a soberania de exercício reservado privadamente ao
monarca hereditário, intitulada Poder Moderador. O artigo 98 o definia
como “a chave de toda a organização política, delegado privativamente ao
imperador como chefe supremo da nação e seu primeiro representante,
para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência,
equilíbrio e harmonia entre os demais poderes”.
Este “velar pelo
equilíbrio” não tinha nada de equilibrado. A constituição definia o
Poder Executivo como inteiramente subordinado ao monarca, bem como o
Judiciário. Por isso a história política do Império foi a história de um
conflito de soberanias – parlamento de um lado, o resto subordinado ao
monarca do outro, até que o d. Pedro II do retrato conseguiu um
equilíbrio criando um parlamentarismo que não existia na lei.
O modo de operação do
sistema foi descrito com grande precisão por Nabuco de Araújo num
famoso discurso de 17 de julho de 1868: “Vede este sorites fatal, este
sorites que acaba com todo o sistema representativo: o Poder Moderador
pode chamar quem quiser para organizar o ministério; esta pessoa faz a
eleição, porque tem de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí o
sistema representativo de nosso país”.
Aqui também se
descreve o ciclo eleitoral, mas de modo inteiramente contrário ao do
primeiro modelo exposto acima. O detentor do poder maior está no alto,
traz representantes eleitos como subordinados para o Poder Executivo que
comanda. Nos tempos imperiais, os ministros levados ao poder trocavam
imediatamente todos os presidentes de província por aliados. Esses
presidentes trocavam os funcionários públicos encarregados de organizar
as eleições e distribuir benesses para partidários. Sob nova direção da
máquina acontecia a eleição. A eficiência era enorme, como notou George
Boherer:
“É difícil saber até
onde se usou fraude e pressão para determinar o resultado da eleição.
Contudo, é certo que nenhum ministério jamais perdeu uma eleição, mesmo
quando os membros do parlamento anterior eram pronunciadamente
oposicionistas”.
Em ambos os modelos
existem ciclos de exercício do mando. No primeiro, a soberania do
eleitor é o ponto fixo, do qual saem os eleitos que comandam o Estado,
as políticas de governo destinadas a satisfazer a vontade dos eleitores –
políticos eleitos e funcionários estáveis são pontos subordinados a
esta vontade. O Estado serve à sociedade, que tem o poder maior.
Já no caso do Poder
Moderador, fixo é o poder maior de seu detentor. Ele é dono da chave que
coloca alguns no ministério, dos cargos que permitem aos escolhidos se
transformar em eleitos – e o eleitor fica na prática apenas com a função
de ratificar as escolhas vindas do alto, através de eleições
controladas a partir do governo. Tanto o exercício do mando estatal como
da função de representantes eleitos são reservados apenas a
intermediários temporários e subordinados ao Poder Moderador. O Estado
tem o poder maior e se serve da sociedade.
Ruy Barbosa, liberal de fato
Enquanto pensava em
tudo isso meu olhar finalmente se fixou num ponto: o pequeno busto de
Ruy Barbosa, colocado numa lateral do palco. Como liberal de fato, ele
enfrentou, em 1910, a primeira versão republicana de uma candidatura
autoritária, encarnada no Marechal Hermes da Fonseca. A chamada Campanha
Civilista entrou para a história como um embate entre dois modos
opostos de conceber o poder, com Ruy Barbosa defendendo a soberania
popular e os defensores do marechal uma ordem hierárquica, uma versão
republicana do Poder Moderador. A história se repetiu na segunda
Campanha Civilista, no distante ano de 1919. Dessa vez Ruy Barbosa
enfrentou um ex-juiz do Supremo Tribunal Federal (e ali aposentado por
invalidez, com direito a pensão plena), Epitácio Pessoa. Sabendo que ia
perder, definiu desta forma o sistema de poder vigente num discurso de
campanha:
“As belezas do presidencialismo brasileiro (…) poluíram a vida parlamentar de chagas inconfessáveis, de segredos tenebrosos, de máculas sem nome. (…) Há mesmo a história da ilha de Chipre, onde a efigie de Vênus se apresenta peluda, barbuda, em vestes de mulher mas com cetro e estatura viril. Será talvez que a velha Antiguidade, entrevendo futuros, enxergava que, pelos nossos dias, a Vênus vaga, feminina no seu comércio de avariar corpos, viria a transmudar-se no seu negócio de avariar almas? A República, entre nós, conheceu essa Vênus dessexuada, masculinizada. Estamos saciados até o nojo de lhe sentir o contato viril”.
A imagem do
transexual hermafrodita tem lá sua força: indicar que a exclusão
constitucional do Poder Moderador não levou à exclusão dele como prática
por fora da lei – como os discursadores incensavam no comportamento
atual do Poder Judiciário – nem eliminou os instrumentos de controle
estatal das eleições que permitiam repetir a eficácia do modelo
imperial: fazer o resultado eleitoral ser comandado “do alto”, sem se
deixar levar pela influência “de baixo”, isto é, dos eleitores.
A herança
hermafrodita da República acabou sendo quase tão eficiente como a do
Império de soberanias separadas. Nela a figura central é a dos
candidatos do governo, os apontados pelo dono da cadeira – tradição
iniciada por Campos Salles, o sucessor de Prudente que criou a política
dos governadores. De 1902 em diante, só três vezes o candidato oficial
perdeu em eleições. Jânio Quadros venceu em 1960; Fernando Collor de
Mello, em 1989; Lula, em 2002. É de se notar que a eficácia das
ditaduras (o sonho de consumo dos defensores do Poder Moderador na
República) em se manter foi menor: falharam, derrubadas quase todas – só
os militares pós-64, que tinham mandatos e seguiram o ritual do
candidato sagrado, conseguiram indicar sucessores autocráticos.
Eleições: declínio do populismo
A esta altura de meus
pensamentos, Celso Lafer começou seu brilhante discurso, centrado nas
relações entre direito e democracia, com a lei sendo mostrada como o
fruto do consenso esclarecido no tratamento da diversidade de posições.
Aliviado, me senti finalmente no presente, apesar do salão de desenho
monarquista. Lembrei-me com toda clareza que existe um largo espaço para
o debate jurídico ali mesmo naquela faculdade, apesar do desequilíbrio
simbólico do espaço.
Com esta boa sensação
deixei o salão. Na saída, sorri para a estátua de José Bonifácio o
Moço, agora na portaria do prédio, e ganhei a rua. Comecei minha
caminhada na direção da Praça do Patriarca. Repetia um dos muitos
trajetos que fiz à noite na região – para compor o capítulo inicial de
Júlio Mesquita e Seu Tempo.
Comecei a pensar na
relação das sensações que havia tido sobre a sobrevivência de certas
instituições com as eleições que se aproximam. Passo a dividir esses
pensamentos com o leitor após uma advertência. Sei que o apaixonado pela
História é o pior dos seres para dar palpite sobre o futuro – tarefa
que economistas e cientistas políticos exercem com grande desenvoltura.
Não pretendo competir minimamente com eles, mas apenas partilhar com os
leitores o que me veio à cabeça quando iniciava minha caminhada.
O ambiente geral não
parece favorecer muito o híbrido arcaico. O pleito deste ano será o
primeiro no qual toda a base do eleitorado estará alfabetizada – índices
próximos a 100% de domínio da escrita entre crianças foram atingidos há
vinte anos, ao final do primeiro mandato do presidente Fernando
Henrique Cardoso, em 1998. Uma parte ponderável desta população teve já
acesso ao ensino superior, especialmente graças aos programas de
financiamento desenvolvidos a partir da gestão Lula. Tudo isso joga uma
certa qualidade sobre o eleitorado universal – desde meados da década de
oitenta do século passado os analfabetos voltaram a votar no Brasil.
Como desta vez não há
eleitos municipais, o nível mais baixo para a escolha desses eleitores
modernizados será o estadual. Em boa parte dos estados, o quadro de
candidaturas está indicando um cenário curioso: o declínio do populismo,
entendido aqui como uma maneira de praticar a atividade política
fundada no modelo do Poder Moderador, com os candidatos oferecendo o
gasto público como promessa e apresentando os serviços estatais como
prebendas que dão sentido ao próprio ato de governar.
O exemplo padrão
deste declínio parece estar no Rio Grande do Sul. Ali, nos últimos 50
anos, apenas um dos governadores deixou de agir como populista,
independentemente do partido em que estivessem. Nenhum foi reeleito.
José Ivo Sartori, mais por necessidade que qualquer outra coisa, foi
antipopulista. Enfrentou as corporações de funcionários – no processo
foi achincalhado e viu a popularidade despencar.
Mas tem alguma
perspectiva de reeleição, aparecendo em situação viável nas pesquisas.
Quase todos seus adversários (especialmente Eduardo Leite, do PSDB; Luiz
Carlos Heinze, do PP; Jairo Jorge, do PDT e Mateus Bandeira, do Novo)
são também antipopulistas. Apenas Migual Rossetto, do PT, prega pela
cartilha do gasto público infinito.
Santa Catarina e
Paraná têm quadros de candidatura que apontam mais ou menos na mesma
direção, com poucas chances de vitória de um candidato populista. Em São
Paulo, há duas décadas longe dessas tentações, curiosamente aparecem
com chances nomes que podem ser associados a elas, como o de Paulo Skaff
– mas este pode não ser o cenário final. Em Minas Gerais a candidatura
de Antonio Anastasia é a principal representação da tendência mais
geral. No Espírito Santo, o governador Paulo Hartung teve igual papel.
No Mato Grosso, o mesmo acontece com o governador Pedro Taques.
O Rio de Janeiro é a
economia mais importante desta parte do Brasil (é difícil avaliar a
tendência no restante do país) a ficar de fora desta conta – mas
eventualmente vem a ser o estado que permite entender melhor as razões
da queda do populismo. O cenário de pesadelo vivido pela população é, em
boa medida, tradução das contas públicas do governo estadual. Ali o
populismo está se esgotando por falta de meios: a dívida do governo do
estado é, proporcionalmente à receita, a maior do país; os gastos com
previdência dos funcionários públicos, de longe os maiores; o
funcionamento dos serviços estaduais, por tudo isso, um dos mais falhos.
Pior, ainda subsiste a crença na chegada de dinheiro público para
cobrir buracos – e os problemas se agravam sem reformas radicais.
O Sol Negro de Júlio Mesquita
A esta altura tinha
atravessado o viaduto do Chá. Veio a parte dura da caminhada, as ruas
fechadas para carros e abertas para as criaturas da noite da região.
Evocações como os círculos mais fundos do inferno de Dante, os monstros
abissais de Milton ou o reino de Hades são as únicas possíveis para quem
não está ali por necessidade. Com elas na mente enquanto andava, veio à
memória a nominação que Júlio Mesquita empregou em seu último editorial
para O Estado de S. Paulo, no dia 3 de março de 1927, para definir o
Poder Moderador que resistia nos hábitos políticos:
“A política, infielmente praticada, tudo perverte. Ia-se criando entre nós, por incessante acumulação de privilégios odiosos, uma casta que para si mesma estabelecera uma justiça especial, a refletir-se como se fora um astro de apocalipse, um sol de sombra, nos preceitos tortuosos de um código de escravização”.
A imagem alquímica me
trouxe uma evocação imediata de um privilégio que tem nome e sobrenome:
previdência dos funcionários públicos. Embora a variação seja imensa, o
caso do Rio Grande do Sul (segundo pior do país, atrás do Rio de
Janeiro) é modelar para se entender a sombra que paira sobre esta
eleição. Em 2015, a principal ação do governo estadual consistiu em
arrecadar dinheiro de 10,6 milhões de cidadãos e entregar a 160 mil
pessoas que merecem uma justiça especial.
De cada 10 reais
arrecadados pelo governo gaúcho, nada menos de 4,1 foram entregues aos
aposentados e pensionistas do Executivo (Judiciário, Ministério Público e
Legislativo pagaram por outras contas). Os funcionários da ativa
receberam menos (3,3 de cada dez reais). Cada aposentado ou pensionista
recebeu pouco mais de 7 mil reais mensais, quatro vezes mais que a renda
média do trabalho no estado. Todos juntos, receberam o equivalente à
metade dos gastos do Bolsa Família em todo o Brasil naquele ano – que
beneficiaram 25 milhões de pessoas.
Certamente é uma das
funções do Estado a de transferir renda. A aposentadoria no setor
público é uma maneira particularmente regressiva de transferir renda – e
a situação do Rio Grande do Sul é particularmente pior que no restante
do Brasil. Ali, como mostram os números, a principal função do governo,
hoje, é tirar dinheiro via impostos dos mais pobres para concentrar nos
mais ricos; dos mais jovens para concentrar nos mais velhos; do trabalho
informal da maioria para um ócio de ótimo padrão, se comparado ao
redor, dos beneficiados estáveis. Do futuro para gastar no passado. E
esse processo de concentração se agravou muito desde 2015: as rendas do
trabalho diminuíram com a recessão, aquelas dos aposentados melhoraram
com a proteção legal para ganhos maiores que a inflação.
Este o hermafrodita
em processo, o Sol Negro em ação. De repente comecei a pensar em minha
caminhada pelo terror noturno de São Paulo como a caminhada de políticos
em busca de votos em 2018. Se não praticarem a política infielmente,
tentarão se comprometer com o eleitor pobre, o eleitor majoritário, ao
buscar votos. Terão de apontar as melhorias que pretendem trazer para o
país como um todo e para cada eleitor em particular. Se não forem
populistas, precisarão prometer tudo isso e mais um equilíbrio que
permita o progresso para quem não vive de privilégios.
Mas, sendo honestos
consigo mesmos, saberão que a voz popular terá cessado nas urnas, que
estarão quase sozinhos no primeiro dia que pisarem em palácio. No caso
do Rio Grande do Sul, por exemplo, mesmo José Ivo Sartori, se reeleito,
sabe que sua principal função será a de esquecer muito do que terá
prometido para a maioria e continuar como servidor mudo da desigualdade,
(já que tudo que se refere aos gastos previdenciários “está na
constituição” e não depende de sua vontade) servindo funcionários
privilegiados.
O novo Poder Moderador: o judiciário molda o quadro eleitoral
O servir mudo a uma
ordem superior e intocável é a sombra republicana do Poder Moderador que
se festejava como primícia do Judiciário – não sem razões práticas. De
fato o Judiciário conseguiu moldar o quadro da atual eleição, sempre
agindo na direção do controle estatal da manifestação da vontade
soberana dos eleitores. As medidas nessa direção vieram em penca:
restrições burocráticas a todos os atos de campanha e propaganda
eleitoral; exclusão do setor privado empresarial na organização das
campanhas; monopólio do dinheiro público no financiamento do pleito,
controlado a conta-gotas a partir de detentores de cargos; exclusão de
candidaturas a partir de ações de improbidade, a imensa maioria movida
por agentes estatais.
O ato mais recente
foi a retirada do foro privilegiado dos 600 representantes nacionais
eleitos – e não dos quase 50 mil funcionários estatais que o mantém,
metade deles juízes. Dessa forma fica claro: abaixo está a lei que vale
para todos, agora inclusive políticos eleitos, acima desta a dos
funcionários estáveis, não dependentes do voto, detentores também de
aposentadorias que os distinguem.
Mas nenhuma medida
teve maior impacto na regulação pelo Judiciário da vontade popular que o
julgamento, condenação e prisão do ex-presidente Lula. O recado
simbólico é mais que claro: não é o eleitor a definir quem pode ser
digno receber sufrágios. O talhe do figurino daqueles que estão à altura
das culminâncias do poder se faz longe da presença dos eleitores,
apenas chamados para sagrar um arranjo.
As limitações dos
poderes dos representantes eleitos acontecem em grande escala, sempre
segundo a voz comum de que os políticos representam mal, não servem aos
interesses coletivos. E, inversamente e de maneira nem sempre muda,
difundindo o argumento de que funcionários não eleitos, mas honestos,
têm muito mais capacidade para defender os interesses da maioria da
população – docemente confundidos com a ação estatal, aquela que eles
comandam. Era exatamente assim que o conservador Brás Florentino
defendia o Poder Moderador em seu auge:
“O parlamentarismo divide os ânimos e os inquieta; põe em dispersão todas as hierarquias; divide a sociedade em cem partidos; e não contente com a divisão natural do poder já estabelecido quer ainda levar esta divisão ao seio do poder centralizador e unívoco, o poder real ou Moderador; o parlamentarismo, que é a divisão no todo e em todas as partes (…) não pode subtrair-se nem se subtrairá jamais desta lei inexoravelmente soberana”.
Saí finalmente da
zona escura, avistei as luzes e o movimento do Bar da Dona Onça, fui
alimentar o corpo na base de rabada com agrião e cerveja. Então voltei
mais calmo ao hermafrodita de Ruy Barbosa, o Sol Negro de seu amigo
Júlio Mesquita. Revi o que está em jogo na eleição. Na óptica do modelo
de soberania popular, a reforma do Estado entra no cálculo eleitoral:
candidatos que tocarem no assunto podem ganhar votos com ele. Na via
inversa, na visão do modelo do Poder Moderador, os candidatos “vão se
comportar” com o assunto reforma do Estado e o eleitor apenas sancionará
a sabedoria dos moldadores escolhendo entre aqueles que passam pelo
crivo.
O quadro de
candidaturas presidencial ainda não se formou completamente, de modo que
é difícil saber quem vai estar de que lado em relação ao peculiar ente
fantasmático, descrito como alquímico ou hermafrodito barbado, que me
assombrou na noite paulistana. Mas a sobrevivência ou não dele vai
depender muito daquilo que mais temem seus cultores: o comportamento dos
eleitores que estão embaixo na escala social – que eventualmente não
precisam nem querem tutela ou favores, além de poder pensar para além do
populismo, como eventualmente pode estar acontecendo nas decisões de
voto estaduais.
Jorge
Caldeira é sociólogo, doutor em ciência política pela USP, historiador e
jornalista. É autor de Mauá: empresário do Império (Companhia das
Letras), História do Brasil com empreendedores, Júlio Mesquita e seu
tempo (Mameluco) e História da Riqueza no Brasil (Estação Brasil), entre
outros.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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